Por Luciana Ramos

Ao longo de mais de duas décadas de devoção à arte, Lázaro Ramos entregou-se aos mais variados trabalhos. Através de papeis cômicos, como o Foguinho da novela “Cobras e Lagartos”, sedimentou não só seu nome, claro indicativo do seu talento, como abriu portas para a ampliação de representações das pessoas negras nas telas, sejam estas pequenas ou grandes. Através de obras contestatórias como os exemplares “Madame Satã” e “Carandiru”, propôs revisão histórica de figuras e momentos definidores da construção nacional. Já no “Espelho”, programa que comandou por anos no Canal Brasil, prestou referência a figuras importantes da cultura afro-brasileira.

Galgando um caminho reflexivo, estudou suas origens, sua cor e a importância do Bando de Teatro Olodum na obra autobiográfica “Na Minha Pele”. Devotou-se a construir uma nova gama de obras infantis pautadas em personagens negros, ajudando a tratar a complexidade da raça e outros temas transversais em livros tão dinâmicos quanto cativantes. Ao assistir à peça “Namíbia, Não!”, de Aldri Anunciação, observou a sua potência e se propôs a adaptá-la para o cinema, apostando na grandeza de escopo da sétima arte para difundir um panorama crítico sobre os caminhos do Brasil, desde o mito da harmonia racial até o alavancamento de uma retórica racista baseada em ódio e deturpações de conceitos.

É exatamente a partir desse ponto que começa “Medida Provisória”. A pauta de uma indenização justa aos afro-brasileiros pelo sofrimento da escravidão e posterior marginalização (proposital) dos seus descendentes surge enquanto debate jurídico, representado pelo advogado Antônio (Alfred Enoch), mas morre pela sabotagem escancarada dos órgãos públicos. Em contraponto, é oferecida uma ideia absurda: a de que os negros brasileiros seriam mais felizes se voltassem aos países africanos de suas origens. Além da clara agressão ao conceito de identidade nacional, reforça-se o processo de apagamento histórico a que os escravos eram submetidos: eram lhes roubados os corpos, os nomes, as famílias e também as origens. Assim, ao falar “voltem à África”, a personagem de Adriana Esteves sintetiza com escárnio o extermínio das diversidades étnicas e culturais inerentes a cada etnia africana.

Conforme esperado, a população reage com deboche e desinteresse – alguns até tentam usar a “oportunidade” para migrar para países mais liberais, como a Holanda – mas tudo muda de figura quando, por meio de uma medida provisória, a ideia vira lei e dá início a uma verdadeira caçada nas ruas brasileiras.

Um ponto interessante explorado pela trama e aplicado com sutileza é o uso do corpo como ferramenta de coerção, de barragem: em cenas sequenciais, uma mulher branca se coloca na frente do carro de Antônio, impedindo a sua passagem; um segurança bloqueia o acesso a um hospital; pessoas preenchem corredores dos prédios, restringindo o acesso dos seus vizinhos negros. O racismo também se denota na linguagem, traduzido na liberdade sentida por personagens brancos, como Dona Izildinha (Renata Sorrah), a vizinha insuportável, a reativar comentários demeritórios em seu discurso. Além disso, o país passa por uma transformação da classificação racial, já que a parte da população antes considerada negra virou “melaninada” ou “dotada de melanina acentuada”.

Cerceados, Antônio e seu primo André (o sempre ótimo Seu Jorge) encontram abrigo dentro do apartamento onde vivem, mas veem suas liberdades básicas – constituintes da dignidade humana – serem cortadas, uma por vez. A resistência aqui é física e, embora representativa, individual. Em outro ponto da cidade, a médica Capitu (Taís Araujo) é acolhida em um espaço que abriga inúmeras pessoas que, como ela, tiveram que fugir. É um afrobunker, um novo tipo de quilombo, sendo físico, arquitetônico, mas também intelectual. Nesse local, são resolvidos problemas específicos de cada membro ao passo que se discutem alternativas ao modelo político imposto. É uma resistência coletiva, dialética, que perpassa pelo instinto de vingança, inerente ao ser humano, mas tenta moldar, a partir da coletividade, uma nova proposta social de inclusão, capaz de destituir o regime autocrático.

Já em seu trabalho de estreia como diretor, Lázaro Ramos demonstra imensa autoralidade, sabendo preencher o seu tema em camadas de questionamentos que potencializam a discussão. Os debates sobre cor de pele e raça, por exemplo, aparecem tanto em forma de comédia na sequência em que cidadãos são obrigados a se definirem para as autoridades, quanto de maneira dramática na cena em que uma menina albina é cassada com a mãe por policiais, incapazes de reconhecerem a complexidade de suas origens.

Transitando entre esses dois polos, constrói-se crítica, engajamento emocional e entretenimento, ligados pela exploração imagética da riqueza afro-brasileira: preenchem as paredes imagens de símbolos como Ruth de Souza (grande atriz) e Moa do Katendê (capoeirista baiano morto brutalmente em 2018); preenchem as telas participações mais que especiais de pessoas que constroem novos significados, como Emicida, Tia Má e a grande Conceição Evaristo. Na miríade de rostos, a câmera opta muitas vezes pelos closes, que potencializam a emoção; em outros momentos, alterna a liberdade da câmera na mão com a rigidez dos planos atrás das grades.

A edição nem sempre favorece esse trabalho, entrecortando demais as ações dramáticas, o que impacta na fluidez da narrativa como um todo, mas esse é um pequeno ponto diante do esmero artístico de Ramos. Um destaque positivo é o uso rebuscado que o diretor faz da palavra, transcrita na adição de dois poemas declamados, um por Seu Jorge (um dos momentos mais belos do longa) e outro por Emicida.

Com a segunda melhor estreia do ano em bilheteria e o maior número de profissionais negros empregados em um filme na história do cinema brasileiro, “Medida Provisória” já seria um marco apenas por sua existência – e resistência, levando em conta os entraves propositais da Ancine, que adiaram o lançamento em quase um ano – mas é também uma potência reflexiva, que exprime o que há de melhor na produção cinematográfica nacional.

Ficha Técnica

Ano: 2020

Duração: 1h 43 min

Gênero: drama, ficção científica

Direção: Lázaro Ramos

Elenco: Alfred Enoch, Taís Araújo, Seu Jorge, Mariana Xavier, Adriana Esteves, Renata Sorrah, Aldri Anunciação, Hilton Cobra

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