Por Luciana Ramos
Tony (Emmanuelle Bercot) está em uma clínica especializada para reabilitação do seu joelho, cujo ligamento foi rompido em um incidente esportivo. A dor é constante e vem acompanhada das lembranças do seu relacionamento extenso com Georgio (Vincent Cassel), com quem tem um filho pequeno.
A relação entre os eventos paralelos da sua vida, passado e presente, fundem-se em uma clara analogia em que o sofrimento físico é uma extensão do emocional. O joelho, conforme colocado no próprio filme, é peculiar pela sua capacidade de apenas dobrar-se para trás. Essa limitação dialoga com a impossibilidade da protagonista de afastar-se do constante cerceamento provocado por seu marido, que a reduz e humilha ao mesmo tempo que seduz.
No começo, o romance parece perfeito. Ela enxerga nele uma liberdade jamais experimentada. Indícios da sua personalidade dominadora, porém, já estão amplamente reconhecíveis, mas aos olhos de Tony os mesmos ganham tonalidades positivas: o amplo desapego às regras sociais e necessidade de exercer controle são suavizados por um humor ácido e galantia sem limites.
Porém, no momento em que uma ex-namorada problemática impõe-se na dinâmica do casal, tudo começa a degringolar. Georgio entende ser o seu dever prestar todo tipo de assistência à problemática Agnés (Chrystèle Saint Louis Augustin). No processo, Tony é expressamente deixada de lado, relegada a esperar por ele em noites vazias.
Ao confrontá-lo na busca pela atenção, ela enxerga pela primeira vez que a violência emocional: a dominação revela-se pelo sexo, medo e humilhação. Seu desespero em adequar-se à novas situações na esperança de não perdê-lo, uma vez que as memórias do tempo bom ainda estão presentes, a joga em uma espiral rumo ao fundo do poço.
Nessa jornada, sentimentos conflitantes se misturam, resultando na impossibilidade de deixar completamente o seu agressor/marido. É por conta do acidente, cuja dor física se impõe sem pedir licença, que Tony começa a refletir sobre sua vida e tentar obter clareza sobre as consequências da submissão na sua realização como mulher, esposa e mãe.
Ao intercalar passado e presente, a diretora Maïwenn costura os seus argumentos, reiterando os dois lados – sedutor e repulsivo – que relacionamentos dessa natureza podem conter, demarcando o extensivo trabalho necessário para sua superação. Ao passo que os momentos felizes são filmados em amplitude, com enquadramentos que reiteram visualmente a liberdade experimentada pela protagonista, os de dor contraem-se em planos fechados, reflexão do paulatino processo de sufocamento.
Dessa maneira, “Meu Rei”, título extremamente apropriado, revela-se complexo e bem construído. O filme evita posicionamentos ou reduções, levando o espectador a questionar os limites de um enlace romântico. Este estende-se à descoberta da real natureza do relacionamento de Georgio e Agnés, cuja deturpação também é fruto do processo degenerativo do amor.
É importante ressaltar que uma obra como essa pauta-se muito no trabalho dos seus atores para sua validação. Vincent Cassel trabalha as contradições de Giorgio com maestria, fornecendo-lhe camadas que impedem interpretações estereotipadas de gênero. Entretanto, a maior razão de assistir à obra é a atuação de Emmanuelle Bercot, que sabe trabalhar a multiplicidade dos sentimentos de Tony, revelando a força do seu talento na fragilidade da sua personagem. Por esse papel, ela dividiu o prêmio de melhor atriz na 68ª edição do Festival de Cannes.
Por meio de construções narrativas duais, o longa mostra-se poderoso e, como Giorgio, seduz o público a experimentar um pouco da dor de Tony. Em outras palavras, é um filme que merece ser assistido.
Essa crítica faz parte da cobertura do Festival Varilux de Cinema Francês 2016
Ficha técnica
Ano: 2015
Duração: 128 min
Nacionalidade: França
Gênero: drama
Elenco: Vincent Cassel, Emannuelle Bercot, Louis Garrel
Diretor: Maïwenn
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