Anna (Jessie Buckley) e Ryan (Jeremy Allen White) estão apaixonados – e eles podem provar. Na distopia “Na Ponta dos Dedos”, basta um simples teste para quantificar o amor. É possível, no entanto, trabalhar a conexão dos casais (uma maneira de tentar garantir um resultado positivo) e é esse ponto o que interessa a Anna. Seu relacionamento é absolutamente estável em toda a sua monotonia. Há algo de protocolar no entrelaçar das suas pernas com as de Ryan enquanto assistem TV ou na maneira como se banham: nota-se uma estranheza na falta de química em momentos tão íntimos. O fato de serem 100% match, embora alegre a mulher, também acende uma solidão persistente, o que a leva a ir trabalhar no Instituto de Treinamento do Amor.

Concebido por Duncan (Luke Wilson), um cara divorciado que não deseja mais sofrer com separações, ele estimula dinâmicas curiosas entre casais. De incêndios falsos a eletrochoques e testes de cheiros, há todo tipo de apelo para alimentar a paixão. Exploram-se símbolos que consideramos, em maioria, românticos, como o barulho da chuva, músicas francesas, aulas de cerâmicas a dois ou até mesmo filmes com Hugh Grant. Sob a marquise do cinema, a alcunha “ninguém entende mais de amor” revela uma fina ironia que percorre todo o filme (vide o trágico fim do seu casamento com a atriz Elizabeth Hurley).

O diretor Christos Nikou brinca a todo momento com as desconstruções, subvertendo situações aparentemente românticas para instigar a questão principal do filme: seria mesmo possível quantificar um sentimento? O amor é domável, controlável, ou mesmo, confiável? O tema não é apenas trabalhado na dissonância entre cenários apaixonantes e interações etéreas: ele é alojado na psique da protagonista quando esta passa a se interessar pelo instrutor Amir (Riz Ahmed).  

O colega de trabalho é tão fechado quanto Anna, apesar de possuir um senso de humor discreto que ela não consegue interpretar bem. Há algo na troca de olhares que indica, no entanto, que eles conseguem se compreender melhor que seus “pares perfeitos”. O longa apresenta essa rachadura aos poucos, com sutileza e poesia: é o toque de mãos tentando consertar uma janela quebrada ou uma risada em comum; em uma piscina, ela observa mergulhada ele de longe, em outro dia, Amir fica encantado a ouvindo cantar.

O grande impedimento deste romance é a rigidez do universo distópico, que condiciona as pessoas a estabelecerem relacionamentos baseados em uma equação. Não há, aqui, possibilidade de continuar junto em caso de resultado negativo; pessoas sozinhas ou muito rejeitadas são julgadas e, mais do que trazer felicidade, o amor é uma ferramenta de angústia e sofrimento – mesmo os casados parecem meio miseráveis com suas escolhas.

Sem nunca perder o ritmo, o longa estabelece questionamentos interessantes, brincando com as assimetrias também na estética, a exemplo da falta de cor e textura dos ambientes, além da iluminação sombreada que parece externar os sentimentos das personagens. Há de se pontuar a bela passagem em que Anna e Amir se cruzam à primeira vez, embarreirados em uma escadaria por uma reprodução gigante de “Os Amantes”, de Magritte.

O clima retrô parece ser senso comum nesse tipo de produção e preenche a tela, complementada por uma trilha sonora oitentista e levemente cafona, que é perfeita para a ocasião. Porém, toda essa arquitetura fílmica não funcionaria sem o comprometimento total do elenco. É o trio principal, composto por Jessie Buckley, Riz Ahmed e Jeremy Allen White, o responsável por vender a ideia do filme e, assim, tornar as quebras de expectativa críveis. O empenho de Buckley, em especial, é considerável, visto que sua personagem acredita piamente em tudo que é dito sobre essa configuração social; é da sua insatisfação, portanto, que brota a jornada emocional do filme.

Sutil, engraçado e poético, “Na Ponta dos Dedos” é uma obra que se aproxima de tantas outras com temas similares (“Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças”, “Ela”), mas consegue apresentar uma visão fresca sobre o assunto. Infelizmente, no cenário mercadológico atual, esse tipo de filme é despejado nos streamings sem qualquer cerimônia. Ele está disponível na Apple TV+.

Ficha Técnica

Ano: 2023

Duração: 1h53m

Gênero: drama, romance, ficção científica

Direção: Christos Nikou

Elenco: Jessie Buckley, Riz Ahmed, Jeremy Allen White, Luke Wilson, Annie Murphy

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