Por Luciana Ramos

 

As quatro versões ao longo de oito décadas tornam “Nasce Uma Estrela” a história mais duradoura de Hollywood, a representação dramática do peso da fama através do relacionamento entre uma mulher desconhecida e de talento com um astro masculino. A trama nasceu do desejo de David. O. Selznick, um dos mais proeminentes produtores do cinema americano, que desejava expor os podres da indústria – em versão romantizada, obviamente.

Tanto o remake de 1954 quanto o de 1976 serviram como veículos de exaltação dos talentos das cantoras/atrizes Judy Garland e Barba Streisand. Neste intuito, surgiu o projeto da nova versão, que contava com Beyoncé no papel principal e seria dirigida por Clint Eastwood. Diversos problemas de produção levaram a uma sucessão de desistências e o filme foi parar nas mãos de Bradley Cooper, que não só assumiu o papel de ator como encabeçou a direção e roteiro do longa.

Mantendo-se fiel à base da versão de Streisand (pautada na música e não no cinema), ele aperfeiçoou pontos mal trabalhados das obras anteriores, mostrando uma preocupação com a contextualização de todas as passagens dramáticas, tornando esta uma narrativa mais redonda, completa. Do plot original, resgatou o tema da fama: o seu poder avassalador em contraponto à força do amor.

 

 

Esta retrata a história de Ally (Lady Gaga) e Jack (Bradley Cooper). Ela trabalha como garçonete e exercita seu domínio vocal em apresentações em clubes de drags (uma adaptação muito bem-vinda por ser relacionável à persona de Gaga). Ele é um cantor country super famoso mas que, nos bastidores, sofre tanto com o alcoolismo quanto com uma condição de saúde que põe em risco o seu futuro profissional.

Um dia, depois de uma grande apresentação, o cantor decide parar em um bar para beber e se encanta por Ally, que apresenta uma versão de “La Vie en Rose”. Fascinado pelo seu talento, ele impulsiona a sua carreira, convidando-a para se apresentarem juntos – o que, obviamente, culmina em um relacionamento amoroso.

Porém, o interesse de uma gravadora na nova cantora provoca rusgas no casal, tanto pelo fato de Jack ser visto como ultrapassado por uns quanto pelos seus julgamentos sobre a construção de uma persona artística falsa para ela. Essa é a fonte de tensão que permeará toda a narrativa, estabelecendo o romance e a fama muitas vezes como antagonistas.

Muito do trunfo do novo “Nasce Uma Estrela” vem da relação próxima da personagem principal com a cantora que a interpreta. Ao escolher Lady Gaga para encarná-la, Cooper foi muito inteligente em explorar o fato de que ela é uma construção, uma imagem fabricada direcionada a um publico particular. O filme aborda esse paralelo em diversos momentos: na interação inicial, Jack pede que Ally retire toda a sua maquiagem, arrancando suas sobrancelhas falsas, pois deseja “conhecê-la”; mais adiante, ela é orientada pelo seu produtor a inserir uma batida mais pop nas suas músicas, contratar dançarinos e pintar o cabelo de laranja, o que o Jack detesta e critica constantemente.

Para ele, esses artifícios mascaram um talento natural; assim, é necessário despir-se de tudo para encontrar sua própria voz – o que não deixa de ser uma crítica a verve comercial da indústria da música, que obriga os artistas a se tornarem “marcas”. Cabe dizer que o modo como esse dilema é resolvido (através da canção final) é muito bonito.

 

 

Diante da boa construção do roteiro, é importante ressaltar que uma alteração fundamental, a da condição de saúde do cantor (inserida nessa versão) pode suscitar um questionamento ético através do modo como ele lida com ela, algo não exaltado pelo filme, mas ainda passível de debate. O nível de incomodo com essa construção, que depende de cada espectador, pode definir o sentimento em relação a toda a obra.

O longa marca a primeira incursão de Bradley Cooper na direção e ele demonstra talento ao conseguir inserir um cunho autoral em uma história tão difundida. Além disso, mostra-se igualmente preciso na direção de cenas íntimas e nas passagens musicais, que representam um grande desafio devido a escala. Muitas delas foram filmadas no Festival de Coachella, mas ele conseguiu usar a multidão a seu favor e conferiu naturalidade a essas passagens.

Como ator, investiu no tipo country de fala arrastada e grave, já visto antes em caracterizações como a de Heath Ledger em “Brokeback Mountain” e Jeff Bridges em “Coração Louco”. A opção é justificada através da sua dinâmica com Bobby (Sam Elliot), irmão que coordena a carreira do cantor (e outra fonte de tensão). Apesar de o filme ser essencialmente sobre a ascensão de Ally, é pontuado em muitos momentos sob a percepção de Jack sobre o desenrolar dos fatos e Cooper consegue dar credibilidade a seu personagem, ainda que não se destaque.

Este fica por conta de Lady Gaga, em seu primeiro papel no cinema. Tal como foi para Garland e Streisand, a trama trabalha a favor da cantora e atriz, que consegue exprimir seu dotes artísticos tanto nas passagens musicais quanto nas melodramáticas. Ela encarna Ally com empatia e naturalidade, demonstrando estar confortável em sua posição. O peso da sua personagem na trama é essencial para seu funcionamento e Lady Gaga, ao fazer um bom trabalho, garante o sucesso do filme.

Romântico, dramático, melancólico. “Nasce Uma Estrela” é a história que Hollywood adora contar, a dos sacríficos que a fama impõe, o quão distante as pessoas tendem a ir para alcançá-la, em contraponto à construção do amor como ambivalente, uma base sólida que ora beneficia, ora prejudica. A narrativa, tão emblemática do cinema americano, é tratada com o devido respeito, cabendo até uma pequena homenagem ao começo, quando Ally cantarola “Somewhere Over the Rainbow”, música principal de “O Mágico de Oz”, que tornou Garland um ícone.

 

Pôster

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ficha Técnica

 

Ano: 2018

Duração: 136 min

Gênero: drama, romance

Direção: Bradley Cooper

Elenco: Lady Gaga, Bradley Cooper, Sam Elliot, Anthony Ramos, Shangela, Dave Chapelle

 

Trailer:

 

 

Imagens:

Avaliação do Filme

Veja Também:

Guerra Civil

Por Luciana Ramos   No fascinante e incômodo “Guerra Civil”, Alex Garland compõe uma distopia bastante palpável, delineada nos extremos...

LEIA MAIS

A Paixão Segundo G.H.

Por Luciana Ramos   Publicado em 1964, “A Paixão Segundo G.H.” foi há muito considerado um livro inadaptável, dado o...

LEIA MAIS

O Menino e a Garça

Por Luciana Ramos   Aos 83 anos, Hayao Miyazaki retorna da aposentadoria com um dos seus filmes mais pessoais. Resvalando...

LEIA MAIS