Por Luciana Ramos

Madeleine Verdier (Nadia Tereszkiewicz) é um jovem aspirante a atriz que não consegue papel nenhum, além de ser assediada e descreditada. Não obstante, sua colega de quarto Pauline Mauléon (Rebecca Marder) tenta escapar da cobrança de aluguéis atrasados. Sem dinheiro, perspectiva ou, quiçá, um teto para cobrir suas cabeças, elas parecem condenadas a pobreza.

Eis que Madeleine é acusada de um crime bárbaro: a morte de um grande produtor de cinema, Montferrand (Jean-Christophe Bouvet). Sua resposta inicial é a combinação de medo e revolta, até que começa a pensar nas alternativas (um teto para morar na prisão, a possibilidade de transformar o julgamento em um espetáculo) e decide assumir a autoria do crime.

Ela e Pauline tramam todos os pormenores necessários para transformá-la em uma estrela. Certamente, o ato deve ser descrito como autodefesa, um grande monólogo deve ser dirigido ao público comum que acompanha seu destino no tribunal; as roupas, embora recatadas, devem apelar ao glamour para enaltecer a figura da atriz.

Assim, tece-se um jogo interessante entre o crime original e seus desdobramentos em duas frentes, na vida das jovens que decidiram subverter a misoginia e espetacularização da sociedade dos anos 30 a seu favor e, de outro lado, a inspiração que essa jogada desperta em outras mulheres, insatisfeitas de suas próprias condições.

O longa começa abraçando a teatralidade, seja no confinamento dos espaços ou na artificialidade deles. O tom combina com o tipo de humor proposto e, paulatinamente, a obra vai expandido seus limites visuais em volume e complexidade. Nessa composição, destaca-se a riqueza dos figurinos. De peles penduradas a vestidos de seda com cortes profundos e chapéus extravagantes, as roupas definem com clareza a época, além de remeter diretamente a Era de Ouro hollywoodiana, claramente venerada pelo diretor.

A ambientação é muito ajudada pela cinematografia, que brinca com o cinema antigo. Todas as cenas possuem o que se convencionou chamar de “efeito vinheta”, com o foco de luz no centro da ação e certo desbotamento nas laterais dos planos. As versões do crime são apresentadas em pequenas esquetes que adotam a linguagem do cinema mudo, com o exagero característico, além de uma brincadeira com a proporção de tela.

O texto acompanha esses elementos estéticos, proporcionando a fluidez característica de boas comédias. Fortemente inspirado nas screwball comedies, filmes americanos dos anos 30 estrelados por atores como Katherine Hepburn e Cary Grant, o roteiro ancora o absurdo como guia das situações – seja na ideia inicial, na inveja da atriz Odette Chaumette (Isabelle Huppert) do clamor público da assassina ou na condução do delegado Gustave Rabusset (Fabrice Luchini) sobre o caso. Os diálogos são incisivos e acelerados, criando a atmosfera amoral que guia a trama.

Embora a sua arquitetura não seja tão original (o americano “Chicago” é facilmente lembrado), Ozon preenche a narrativa com pequenas subversões que tornam seu filme deliciosamente afiado. Decorre-se ao tempo todo sobre as condições femininas na época, dos comentários abertamente misóginos às pontuações sobre o direito do voto.

Em um contexto amplamente desfavorável, a tábua de salvação oferecida é exatamente o crime, seja ele cometido ou não, pois é o invólucro de assassina que abre portas em uma sociedade doente, viciada não só no consumo de detalhes dos eventos como das pessoas que o cercam, transformando-as em celebridades. Traça-se, nesse ponto, um interessante paralelo com a contemporaneidade, certamente o cenário inspirador de Ozon. Sua crítica trafega em linhas suaves, não há aqui a necessidade de grandes questionamentos sociais; a proposta é abraçar, rir e compreender o absurdo.

O longa deriva de uma peça, escrita por Georges Berr e Louis Verneuill, e soma-se à “Frantz” e “Peter Von Kant” na tradição do diretor em propor releituras de obras autorreferenciais. Já os elementos do roteiro, por unirem crime, comédia e personagens femininas, remetem ao ótimo “8 Mulheres”. O feminismo improvisado e circunstancial também aparece em “Potiche – Esposa Troféu”, filme em que Catherine Deneuve vive a esposa de um dono de fábrica que se vê obrigada a negociar com eles em greve. É um retrato de um cinema mais despretensioso, ainda provocador, mas pouco mergulhado em questionamentos existenciais ou psicológicos.

Ao propor o absurdo como ferramenta de subversão, “O Crime é Meu” cativa, diverte e, de quebra, ainda nos oferece mais uma performance inspirada da grande Isabelle Huppert.

Ficha Técnica

Ano: 2023

Duração: 1h 42m

Gênero: comédia, policial, drama

Direção: François Ozon

Elenco: Nadia Tereszkiewicz, Rebecca Marder, Isabelle Huppert, Fabrice Luchini, Danny Boon, André Dussollier, Jean-Christophe Bouvet

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