Por Luciana Ramos

 

Por que refazer um filme de sucesso? Seria para apresentar a obra a um novo público, sedimentar a marca do estúdio ou seria apenas uma questão monetária, movida pelos lucros potenciais não só do filme, mas do merchandising adjacente? No caso da prometida refilmagem do universo de monstros da Universal, a verdade abarca estes três ângulos tão distintos. Perdendo espaço em um mercado cada vez mais monopolizado por blockbusters, a tradicional major buscou no seu catálogo suas maiores pérolas e optou por remakes que adulariam os saudosistas e conquistariam um novo público fiel…na teoria.

Como o fracasso retumbante do péssimo “A Múmia” (2017) demonstrou, nem o apelo nostálgico ou mesmo o carisma de uma grande estrela como Tom Cruise são suficientes diante de um projeto engessado na reciclagem e, portanto, incapaz de apresentar novas ideias. O baque financeiro abriu os olhos da empresa, que rapidamente cancelou as outras produções (algumas já em curso) e reavaliou suas expectativas mercadológicas.

Neste momento, o roteirista e diretor Leigh Whannell, conceituado entre os cinéfilos fãs de terror, mas ainda sem grande projeção, apresentou a sua interpretação de uma possível refilmagem do clássico “O Homem Invisível” (1933), centrado na jornada de uma mulher em um relacionamento abusivo. Assim, conseguiu atrelar um tema importantíssimo em voga com a essência do conceito inicial do personagem, que é assustador exatamente pelo seu caráter intocável, imprevisível e, portanto, inimputável.

O terror experimentado por Cecilia (Elisabeth Moss) é arquitetado já na cena inicial, que marca a sua fuga de Adrian (Oliver Jackson-Cohen). Os espaços vazios e o silêncio latente, por vezes quebrado quando ela esbarra acidentalmente em algo, concedem uma dimensão real do medo que ela sente do parceiro, sentimento que não é suavizado nem quando, aparentemente, ela se instala em um ambiente seguro, a casa do amigo James (Aldis Hodge), que é um policial e vive com sua filha Sydney (Storm Reid).

A sua postura curvada, a incapacidade de andar pela vizinhança, o modo acuado como fala são sinais da tortura física e psicológica que a personagem passou e justificam, aos olhos dos amigos e da irmã Emily (Harriet Dyer), a sua reação desconfiada quando recebe a notícia de que o namorado morreu. Mesmo assim, ela permite-se relaxar e começar a encarar a vida com mais esperança, até que começa a receber sinais de que está sendo observada.

Estes são pequenos – portas que se abrem, a marca do peso de um corpo na poltrona – e imperceptíveis aos olhos dos demais, mas, na pele de quem já se sentiu ameaçada, são mais do que evidentes. Obviamente, a sua narrativa de que o namorado forjou a própria morte para puni-la não só é desconsiderada, mas também tratada como símbolo de seu desequilíbrio mental, o que sozinha em um jogo pela sobrevivência.

Um dos grandes trunfos do remake é a capacidade de síntese de Whanell tanto no campo narrativo quanto no estético. Pequenas dicas e iscas são lançadas ao longo da projeção e ressignificadas em algum momento, tornando-se essenciais para o desfecho da jornada de Cecilia. Neste sentido, é importante notar o modo com que o diretor explora os espaços. Na cena inicial, por exemplo, enfatiza a angústia da personagem ao optar por enquadramentos amplos, que reforçam não só sua solidão como a dificuldade física em escapar de um espaço tão amplo – além disso, ainda fornece dicas da argumentação-base da trama.

Um pouco mais adiante, as leves movimentações de câmera, que se descolam da protagonista para assumir um POV mais voyeurístico reforça o incômodo vivenciado por ela ao se sentir observada. Por fim, em uma sequência-chave, adota o ponto de vista radicalmente oposto, mas ainda assim focado em Cecilia, demonstrando o caráter obsessivo do agressor e contribuindo para o aumento da tensão.

O trabalho estético encontra respaldo em uma trama bem embasada, que se vale de elementos infelizmente recorrentes em casos de abuso, como o descrédito da vítima e a sensação de privação de liberdade – esta pautada na proporção cruel do número de denúncias que não resultam em punição efetiva dos criminosos.

Munida de uma boa arquitetura cinematográfica, a obra se completa com a intepretação de Elisabeth Moss, que tem se tornado uma das atrizes mais interessantes de Hollywood tanto por seu talento como por saber escolher muito bem os projetos a que atrela seu nome. Os seus olhares intensos, ora perplexos, ora desconfiados, já tão bem explorados na série “The Handmaid’s Tale”, encontram terreno sólido no longa em questão e são fundamentais para a credibilidade da obra, que muito se utiliza de efeitos especiais.

 A expertise de Leigh Whannell no gênero terror o levou a fazer o que os executivos da Universal não souberam: pegar o que há de simbólico e valioso nos clássicos e atribuir-lhes novo valor ao relacioná-los com um tema atual e pertinente. “O Homem Invisível” é um filme diferenciado do gênero por explorar o terror real escondido no fundo de relacionamentos abusivos, lindos e grandiosos na fachada, como a casa de Adrian, mas podres e dolorosos quando observados mais de perto.

Ficha Técnica

Ano: 2020

Duração: 124 min

Gênero: ficção científica, terror, mistério

Direção: Leigh Whannell

Elenco: Elisabeth Moss, Aldis Hodge, Storm Reid, Harriet Dyer, Oliver Jackson-Cohen

Avaliação do Filme

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