Por Luciana Ramos

 

Aos 83 anos, Hayao Miyazaki retorna da aposentadoria com um dos seus filmes mais pessoais. Resvalando em memórias para construir uma história surrealista, o diretor se debruça sobre temas como morte e propósito em um filme encantador.

“O Menino e a Garça” começa com conotações realistas no Japão da década de 40. Aos 12 anos, Mahito sofre uma perda irreparável quando sua mãe falece em um incêndio no hospital em que trabalhava (tal como aconteceu com o jovem Miyazaki). Seu pai, o dono de uma empresa de aviões de guerra, casa-se com Natsuko, irmã de sua mãe, e conduz a nova família ao interior.

A antiga propriedade possui algumas particularidades, como uma trupe de senhoras que cuidam dos afazeres e uma garça cinza que desafia Mahito a buscar por pistas do seu passado. O garoto parece mais interessado de início em lidar com o luto da mãe, porém, após alguns confrontos, ele decide seguir o animal até uma torre abandonada, onde o seu tio-avô entrou para nunca mais sair.

A partir desse momento, o filme assume o perfil de fábula, explorando uma realidade onde tempo e espaço se moldam às vontades de um guardião. O garoto parte em busca não só da sua volta para a outra dimensão, mas também de Natsuko, que está grávida e permanece presa em algum lugar desse submundo. Transitando entre sentimentos conflitantes, ele pensa também em garantir uma chance de felicidade ao seu pai – ou ao menos evitar um novo luto.

Os cenários e personagens sucedem-se em velocidade. O jovem possui um senso de urgência típico de uma realidade inóspita, a começar por sua relação com a garça do título, que se transforma lentamente de um animal elegante para um ser disforme meio humano e meio animal, com corcunda acentuada e disposição infinita para servir os interesses do seu senhor.

A dor da perda é latente em todo o filme, assim como a sucessão de reflexões sobre achar um caminho com sentido, que satisfaça uma sensação de completude. A poesia se torna mais presente a partir do encontro do protagonista com uma doce garota disposta a ajuda-lo em sua jornada. Tudo nesse mundo possui alguma relação afetiva com Mahito e, de certa forma, o desafia a reavaliar sua história.

Originalmente adaptada do livro “Como Você Vive?”, de Genzaburo Yoshino, o longa de Miyazaki resvala no esplendor surrealista de “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll, sem perder o foco existencialista que o define. Esse fluxo imagético de ponderações e metáforas chega a um belo (porém confuso) final, que concede algumas possibilidades de respostas para a questão principal: como você vive?

É melhor esquecer o passado, fingindo que nada de ruim lhe aconteceu? Ou seria mais sábio aceitar? Deve-se abdicar do sofrimento ou lançar-se à vida com mais intensidade para contrapor a tristeza? Miyazaki oferece um vislumbre sobre qual caminho prefere, reafirmando seu ideal como um artista que, ao contemplar o próprio fim, resolveu transformar o sofrimento em arte.   

Ficha Técnica

Ano: 2024

Duração: 2h 03m

Gênero: aventura, drama, animação

Direção: Hayao Miyazaki

Elenco: Soma Santoki, Masaki Suda, Kô Shibasaki

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