Por Murillo Trevisan

“The Hate U Give Little Infants F*cks Everybody” (O ódio que você passa para as criancinhas f*de com todo mundo), advertiu Tupac em uma de suas mais famosas composições “Thug Life” (Vida Bandida). O rapper e ativista social, que fez bastante sucesso na década de 80 e 90, de fato não estaria nada contente com a deturpação de sua icônica abreviação (T.H.U.G.L.I.F.E.), que hoje é usada simbolizando ostentação por diferentes classes sociais nos Estados Unidos.

Foi com a premissa da música de pac, somada aos inúmeros casos de assassinato de negros por policiais racistas,  que a americana (e ex-rapper) Angie Thomas teve a ideia de escrever “O ódio que você semeia”, um romance sobre Starr, moradora de um gueto nos Estados Unidos que, ainda na adolescência, testemunha a morte de dois de seus melhores amigos, sendo um deles por um policial numa blitz.

A adaptação para as telonas, roteirizada com tamanha competência por Audrey Wells (“Sob o Sol da Toscana”), segue o mesmo desígnio de seu material original, usando como base um conto adolescente enriquecido por diálogos de cunho ativistas e consciência social. A contextualização é dada a partir do prólogo, onde Mav Carter (Russell Hornsby) transmite para seus filhos ainda pequenos suas experiências e os ensina como agir em determinadas situações, usando como base o “Programa de 10 Pontos dos Panteras Negras”, este que os fez decorar de cabo a rabo.

A trama segue com Starr (Amandla Stenberg) já adolescente que, com o recurso de narração em off, nos dá o testemunho do que viveu. A protagonista leva uma vida dupla, pois nasceu no gueto em Garden Heights, mas estuda em um colégio de classe média alta, onde os alunos em sua grande maioria são brancos. Essa distorção diária entre duas realidades tão distintas (metaforizado pelos 2 “erres” em seu nome) a força a camuflar seu verdadeiro EU, não podendo agir como alguém do subúrbio no colégio (por mais que seus colegas a instiguem) e nem como uma patricinha em seu bairro.

Depois de presenciar a morte de seu amigo de infância Khalil (Algee Smith) por um policial em uma blitz, que diz ter “confundido” uma escova de cabelo com uma arma, ela se vê em uma situação difícil, sem saber se deve testemunhar em júri popular e se expor, ou se deixa isso para trás e segue sua vida em paz. Quando o caso toma maiores proporções, chegando à mídia e consequentemente ao seu colégio, tudo se torna mais complexo, tendo como exemplo o protesto dos alunos, que usaram o fato do garoto assassinado para não ter aula, tratando como motivo para comemoração, ou dos constantes questionamentos sobre se Khalil era mesmo vítima, reduzindo-o ao estereótipo de uma ameaça.

O debate sobre a “Thug Life” é novamente proposto em um diálogo entre pai e filha, onde o fato do garoto ter se sustentado como traficante o torna culpado de sua própria morte. “É mais fácil arrumar crack do que uma boa escola ou bons empregos por aqui”, “isso é o que sobra para nós”, afirma Mav. Esses depoimentos propõem uma ampliação do tema, no qual a contextualização social é imprescindível. As “armadilhas” das drogas, na visão de Mav, funcionam como a utopia de um povo oprimido pelo racismo institucional, que nega oportunidades enquanto justifica assassinatos e prisões de pessoas da raça negra.

Servindo de apoio para a narrativa, essa figura paterna é um importante recurso para o entendimento mais complexo da questão – muito por sua experiência em diferentes lados da sociedade. Seu impacto no comportamento da protagonista é direto, já que ele, no seio familiar, é o que tenta imbuir os filhos de um senso de honra racial – que eles carregam desde os seus curiosos nomes, escolhidos por ele como forma de resistência.

A percepção de Starr de que ela faz parte desse sistema permeado pelo ódio, inclusive no fato de tentar esconder quem ela é para suas amigas e namorado, vem posteriormente, instigando-a a quebrar esse ciclo e fazer a diferença. Em determinado momento, ela participa de uma violento protesto assumindo um megafone, colocando sua voz como contraponto às armas utilizadas por aqueles que deveriam “servir e proteger” à todos, passagem que explicita a tensão entre afro-americanos e a polícia – enquanto instituição.

Por mais que sejam apresentados tantas discussões, o filme (assim como o livro) ainda é uma obra para adolescentes e tende a romantizar alguns pontos, sem perder a seriedade do assunto. No final, ele destoa um pouco da nossa realidade, mas serve como um sinal de esperança para novos tempos.

Pôster


Ficha Técnica

Ano: 2018

Duração: 133 min

Gênero: crime, drama

Direção: George Tillman Jr.

Elenco: Amandla Stenberg, Regina Hall, Russell Hornsby, Anthony Mackie, Issa Rae, Common


Trailer:

Imagens:

Avaliação do Filme

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