Por Bruno Tavares

 

Ao escrever o mito do amor impossível entre Romeu e Julieta, William Shakespeare moldou a forma como a civilização ocidental encara seus relacionamentos. Matando seus protagonistas, o escritor mostrou à humanidade o significado real de um amor romântico e sem limites. Alguns estudiosos sobre o tema afirmam que a força da história reside justamente em seu final trágico. Caso o inglês não tivesse produzido a trama dessa forma, algum outro escritor teria aproveitado a deixa e elaboraria um texto nessa mesma temática.

Nos 400 anos que se seguiram à publicação do livro, a garota Capuleto e o jovem Montéquio viram sua narrativa ser adaptada inúmeras vezes em contos, livros, músicas, filmes e séries. O novo arranjo de tais arquétipos chega aos cinemas sob o título de “Olhos no Deserto” (“Eye on Juliet” na versão em inglês). Dirigido pelo canadense Kim Nguyen, o longa conta a história de Gordon (Joe Cole), um americano que trabalha à distância na segurança de um oleoduto situado no Norte da África. Ele realiza a vigilância controlando hexapods, robôs que se assemelham a aranhas gigantes dotados de armas e câmeras. É por meio de uma dessas máquinas que ele conhece Ayusha (Lina El Arabi), uma jovem que sempre se encontra com o namorado perto da área monitorada. Ela luta contra o casamento arranjado por seus pais com um homem que ela não ama e possui um plano de fuga com Kaarin (Faycal Zeglat). Apesar da distância, Gordon irá auxiliá-la no que for possível a escapar de seu destino.

Repleto de paralelismos delicados, o longa nos apresenta as dicotomias que afastam e, ao mesmo tempo, aproximam os dois protagonistas. O jovem de Detroit trabalha no turno da noite e vive um momento de tristeza por ter sido deixado por sua namorada. Já Ayusha é retratada sempre durante o dia, devido os fusos horários, mas também é entristecida por se ver diante de um relacionamento indesejado. Cada um à sua maneira, a dupla passa por grandes provações em busca do amor verdadeiro.

 

 

Como sua jornada pessoal foi malsucedida, Gordon faz de tudo para que a jovem árabe tenha sucesso em sua empreitada. Essa é a sua motivação como protagonista: até que ele ache um outro amor, precisa acreditar na existência de tal sentimento e, por isso, se esforça para ajudar um romance que se passa do outro lado do globo. Aos poucos, o romance de Ayusha e Kaarin torna-se um combustível para ele continuar vivendo. O personagem lança mão de inúmeros aparatos da empresa para participar desta trama e acaba se tornando um pouco obcecado pela garota.

Entretanto, nenhuma de suas ações seria possível sem a ajuda da tecnologia e este é mais um ponto comparativo entre as realidades apresentadas no filme. “Olhos no Deserto” nos mostra uma América que tem relacionamentos banalizados pela modernidade. Aplicativos de celulares permitem encontros casuais e desprovidos de significados. Robôs a meio mundo de distância servem de instrumento para colegas de trabalho conversarem quando poucos metros os separam fisicamente. Enquanto isso, no norte da África, imperam as tradições milenares. Casamentos arranjados com pessoas mais abastadas impedem que realidades de fome e miséria se concretizem, por isso conceitos como “amor verdadeiro” pouco importam. Diante de tantos extremos, o debate sobre o papel positivo ou vilanesco da tecnologia entra em cena; contudo, o longa não chega a atingir um veredito.

Quem decididamente aparece como vilão é o governo americano que recebe uma fina agulhada. Em certo momento, Gordon é incentivado a melhorar seus relatórios de modo a tornar suspeitas todas as pessoas que se aproximam do oleoduto. Segundo seu chefe, se a companhia que extrai o petróleo não acreditar que aquelas terras são perigosas, a empresa perderia o contrato. O superior arremata com a frase emblemática “sem inimigos, não existiriam empregos neste país”. Esta é uma referência direta à indústria de guerra e vigilância que se instalou nos EUA, que desconfia de tudo e de todos principalmente no que diz respeito ao oriente médio.

 

 

Nos quesitos técnicos o longa também possui um subtexto interessante. Todas as vezes que vai trabalhar, o protagonista usa o uniforme azul de sua empresa, mas sempre está com uma camiseta branca por baixo. O tom azulado representa aqui a tristeza e a solidão que ele vive, além da frieza do local de trabalho. Todos os colegas são afetados por esse ambiente monótono e apático. Porém, sua camiseta branca transmite uma personalidade pura e essencialmente boa. Mesmo que ele pareça um obcecado em sua missão, o branco nos mostra que as intenções permanecem as melhores. Tal sentimento é amplificado no final, quando ele finalmente quebra as amarras azuis que lhe prendiam e mostra ao mundo toda a sua bondade. Ayusha também passa uma mensagem por meio de suas vestimentas. Ao entrar e sair de casa ela é obrigada a usar um pesado casaco que esconde visual e metaforicamente seu espírito livre.

Mesmo com um roteiro previsível que concede ares positivos à prática do voyeurismo, o filme ganha pontos por mostrar a sensibilidade masculina. Gordon é o oposto dos americanos durões e vigilantes representados no cinema. Ele busca relacionamentos significativos quando todos parecem correr disso e ajuda em situações que outros apenas virariam o olhar. Por retratar um amor impossível envolvendo personagens nascidos em países inimigos, o longa se mostra uma versão atualizada do mito shakespeariano. Porém, diferente da história original do escritor britânico, a trama não consegue fugir do lugar comum.

 

Pôster:

 

 

 

Ficha Técnica:

 

Ano: 2017

Duração: 96 min

Gênero: Drama

Diretor: Kim Nguyen

Elenco:  Joe Cole, Lina El Arabi e Faycal Zeglat

 

Trailer

 

 

Imagens

Avaliação do Filme

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