Por Luciana Ramos

 

“Agora eu me tornei a Morte, a Destruidora de Mundos”. Esses versos do hindu Bhagavad Gita rondavam a cabeça de J. Robert Oppenheimer ao assistir o último teste da bomba atômica. Ele havia encabeçado o Projeto Manhattan por dois anos – um esforço governamental milionário, com direito à construção de uma pequena cidade no deserto de Los Alamos – e, embora feliz com o resultado de tanto estudo, não podia deixar de sentir uma certa apreensão sobre seus efeitos.

A destruição nefasta de duas cidades japonesas, combinada ao questionamento da necessidade dessa incursão militar, preencheram espaços da sua mente e nunca mais saíram. Se tornou um homem assombrado, que urgia por mais cautela e ponderação às autoridades. Esse caráter reflexivo não combinava com os anseios geopolíticos dos EUA e, por isso, foi submetido a um dispêndio burocrático sobre suas credenciais – que escondem, de fato, um debate sobre seu legado e serventia.

Ao invés da eventual narrativa cronológica sobre o personagem histórico que se propõe a retratar, Christopher Nolan foca em dois pontos principais para tecer comentários sobre a humanidade. Em fusão, colorido, aborda a construção de uma grande ideia, seu caráter expansivo, sua suposta necessidade e as pessoas que se prestaram ao serviço – em geral, homens com grandes mentes e egos maiores. Em fissão, apresentado em preto e branco, escancara-se o legado de cada um deles, além do jogo geopolítico que costura todas essas relações. Estabelece-se, logo cedo, um caráter utilitarista na dinâmica governamental, que parece premiar quem atende aos seus desejos e descartar quem não tem mais o que oferecer.

A narrativa transita entre esses polos, estabelecendo quatro grandes pontos temporais, que convergem lentamente para um fio histórico bem amarrado. Ao centro, está J. Robert Oppenheimer (Cillian Murphy), um físico com grande capacidade teórica que é recrutado pelo governo americano para o desenvolvimento de uma bomba. Seus questionamentos sobre moléculas, vazios e estrelas são pouco a pouco moldados em imagens mais penetrantes e nefastas, que assolam sua existência, mas não o suficiente para fazê-lo abdicar de seu grande feito.

Rejeitando uma construção lenta e puramente cronológica dos fatos, Nolan constrói uma narrativa fragmentada e expansiva, que se conecta por pequenos pontos – temáticos ou biográficos – para tecer um grande panorama da vida e obra de Oppenheimer. Misturam-se, assim, juventude e velhice, ego e culpa, amores e o apreço por teorias sobre o universo. Em uma escala maior, discute-se o contexto social e político dos EUA, em particular a filiação de mentes brilhantes da época ao Partido Comunista Americano – e como esse fato foi usado como manobra política para “enquadrar” e “moldar” tais pessoas em arenas de fácil manipulação.

Altamente cerebral, como muitos de seus projetos, “Oppenheimer” consegue operar ao longo de suas três horas de projeção com maior equilíbrio do que obras anteriores. A densidade narrativa é permeada o tempo todo pela humanidade de seus personagens, filmados em grandes e profundos closes. Ao fundo, dispõem-se cenários imponentes e diversos, por onde a câmera passeia, que atestam a ousadia do Projeto Manhattan.

O contraponto entre imagens coloridas e preto e branco potencializa a experiência por provocar no espectador a vontade de montar o quebra-cabeça disposto, colocar em ordem os acontecimentos e avaliar os impactos de cada sequência – tudo isso enquanto a ação ainda se projeta em tela. Há um metafórico jogo entre luz e sombra, amplificado pelo destaque do personagem principal do seu fundo. Por vezes ele é borrado ou enevoado, servindo tanto como metáfora do efeito da bomba como do seu encantamento míope por ela.

A belíssima fotografia é complementada por uma imponente trilha sonora, que abusa de instrumentos de cordas e alguns elementos pop, como o tique do relógio, para criar uma certa dissonância harmônica que concede às imagens um senso trágico. Ao centro da produção, está Cillian Murphy em toda a sua carga dramática. Seu olhar é muito explorado pela câmera, e ele consegue passar a complexidade de sentimentos de seu personagem. Igualmente potentes está Emily Blunt, que interpreta Kitty, a esposa de Oppenheimer, e opera em um modo bem mais emocional do que os demais personagens. Já Robert Downey Jr realiza um excelente trabalho ao travestir as características mundanas e mesquinhas de seu personagem com uma imponência típica dos políticos.

A densidade de “Oppenheimer” exige um esforço do público, um convite a sair da passividade comum às produções cinematográficas atuais, mas este é bastante recompensador. Uma vez unidos, os fragmentos da história revelam um tom surpreendentemente meditativo sobre a humanidade – e incrivelmente atual pelos questionamentos dispostos sobre bombas nucleares. É um filme formalmente interessante (esteticamente impecável), mas que se mostra capaz de tocar em dilemas profundamente humanos.  

Ficha Técnica

Ano: 2023

Duração: 3h

Gênero: biografia, drama, história

Direção: Christopher Nolan

Elenco: Cillian Murphy, Emily Blunt, Florence Pugh, Josh Hartnett, Robert Downey Jr., Rami Malek, Matt Damon, Jason Clarke

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