Por Lanna Marcondes

 

Sean Baker retorna à indústria após o sucesso do seu último projeto, Tangerina, que foi o favorito dos festivais independentes de 2015 e inovou em termos de produção ao ser filmado em sua totalidade com três iPhones 5S e um orçamento de produção baixíssimo. Baker é reconhecido por seu humor inteligente, realista e com um olhar para personagens que vivem na pobreza ou à margem da sociedade.

 

Dois anos se passaram até a estreia de seu novo longa-metragem, “Projeto Flórida”, nomeado em homenagem ao projeto de construção do parque Disney World. O filme conta o drama familiar de Moonee (Brooklynn Price) e sua mãe, Halley (Bria Vinaite), que moram em um motel inócuo à beira do famoso parque. Baker representa aqui o que ele chama de “moradores de rua escondidos”, pois o hotel é pago semanalmente por um valor baixo e abriga uma classe muito pobre e ignorada dos Estados Unidos. Lugares como esse são verídicos e inúmeros em estados como a Flórida, tão comuns que o próprio diretor e a equipe visitaram diversas locações como essas para compreender o significado dessa marginalidade.

 

Dentro desse universo, observamos o cotidiano através da perspectiva da menina de 6 anos, muito espirituosa e sagaz. Ela  e seus dois melhores amigos, Scooty (Christopher Rivera) e Jancey (Valeria Cotto), desbravam os arredores do motel Magic Castle em um verão caloroso, encontrando qualquer coisa que pudesse prover entretenimento por um dia. Vemos o cotidiano dessas crianças, com sua inocência à procura de desafios até sua malícia ao fazer uma competição de cuspe em cima do carro de uma das moradoras. Há uma leveza nesse humor de criança, porém não há nada infantil nele. O humor está no cotidiano, na naturalidade de interações entre as crianças, e não uma perspectiva adulta projetada. Essa naturalidade se desenvolve nos pequenos detalhes e escolhas que guiam os personagens, na rotina sem grandes eventos, no tom cômico que a vida pode ter.

 

 

Moonee lidera seus amigos, indo cada vez mais longe para encontrar novas aventuras ao seguir seu próprio imaginário, sem se preocupar em medir seus atos ou pensar nas consequências de suas ações. Ela não é ignorante ao fato de que o que faz é errado, porém sabe que pode se livrar da culpa por ser criança. Isso lhe traz uma liberdade perigosa. Sua mãe, Halley, na casa dos 20 anos, é rebelde, não consegue encontrar empregos regulares e faz qualquer bico para garantir a moradia e alimentação da filha. Há uma certa honra em sua necessidade de prover segurança e saúde para a garota, mas sua autoridade materna termina aí. Ela não impõe limites e até mesmo a incentiva a filha a buscar se divertir sempre que puder. Sua relação com a menina se aparenta com a de irmãs, por sua própria imaturidade. No entanto, há uma cumplicidade entre as duas, seu universo particular funciona perfeitamente em seus métodos e funções, onde elas até trabalham juntas vendendo perfumes na rua para conseguir o dinheiro para pagar o motel naquela semana.

 

Outro personagem de peso é Bobby (Willem Dafoe), o gerente-e-não-dono do motel. Um homem com um grande coração, que conhece todos os seus residentes por nome e se esforça para manter o local em boas condições. Com uma performance incrível por Dafoe, Bobby se desenvolve como uma figura paternal, em seu aspecto de preocupação e cuidado com todos que moram ali, principalmente para Moonee. No entanto, ele mal se mantém como um personagem multifacetado, já que sua vida além do hotel consiste em pequenas aparições de seu filho e nada mais. Apesar de suas conexões interpessoais, Bobby é um personagem reativo na maioria das vezes e, por isso, acaba deixando a desejar em sua relação com a protagonista, beirando ao carinho mas nunca realmente chegando nesse ponto.

 

O próprio motel e seus arredores contêm um ar pitoresco na maioria de seus ambientes comerciais. Tudo ao redor da Disney World precisa ter um lado caricato e chamativo para não se esvair diante da magnitude do parque. Este é o ambiente que Moonee e seus amigos têm acesso: uma Disney World pobre e em ruínas.

 

O roteiro tem uma consistência admirável, onde as consequências para os atos dos personagens se desenvolvem aos poucos, até chegar em um crescente que é impossível de impedir. Os diálogos são significativos, mesmo em sua simplicidade, e cada escolha de palavras acrescenta ao arco pessoal dos personagens principais, mesmo na trivialidade de conversas entre crianças.

 

Um dos pontos mais impressionantes é a direção de arte. Baker não mediu esforços para a criação do lado pitoresco desta Disney World fajuta, escolhendo cores brilhantes como o lilás e roxo que percorre todo o motel Magic Castle, ou os grandes monumentos que decoram as fachadas de lojas e outros hotéis ao redor. A cenografia aqui, criação de Stephonik Youth, supera expectativas, chegando a se relacionar com os próprios filmes de Wes Anderson, reconhecido pela sua caracterização artística em cenografia e figurino.

 

 

A direção de fotografia de Alexis Zabe é tradicional, porém ousada em pontos fortes da narrativa. Apesar do filme percorrer com um ritmo fluído em sua imagem, a fotografia chega a arriscar em alguns pontos da trama para enfatizar o arco dramático. Vemos planos abertos e centralizados – também uma característica reconhecida em Anderson – para a ambientação da locação. Vemos planos por trás das crianças, mantendo sua perspectiva e seu olhar. Vemos visões subjetivas dos personagens em momentos de observação mais precisa. São pontos que aderem à totalidade imagética do filme, mas não chegam a ser seu ponto mais forte.

 

Brooklynn Price e Bria Vinaite são nomes novos na indústria, mas que surpreenderam em performances significativas nesse filme. Baker é conhecido por usar não-atores em seus projetos, e nesse caso não foi diferente. Com Price, ele passou um mês intensivo de treinamento para que ela conseguisse atuar em contrapartida com Dafoe, um veterano de grande reconhecimento da indústria. Ele, por sinal, brilha em seu papel coadjuvante, facilmente nos fazendo compreender suas motivações.

 

“Projeto Flórida” é um filme com um tom leve e fluído, conseguindo uma metamorfose de temáticas dentro de sua narrativa, passando do cômico ao trágico, do amável ao insuportável, com transições impecáveis. É fácil se apaixonar pela vivacidade de Moonee e, ao mesmo tempo, se chocar com a qualidade de vida desse recorte da sociedade americana que muitos decidem não ver. Sean Baker não só consegue enxergá-los, mas coloca um holofote nessa realidade, onde a desigualdade só continua a crescer.

 

 

Pôster

Ficha Técnica

Ano: 2017

Duração: 111 min

Gênero: drama

Diretor: Sean Baker

Elenco: Brooklynn Prince, Bria Vinaite, Willem Dafoe

 

Trailer:

 

Imagens:

 

 

Avaliação do Filme

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