Por Luciana Ramos

 

Entremeando imagens de arquivo de Recife, obras de ficção rodadas lá, comentários sobre transformações arquitetônicas e reflexões sobre o impacto formativo do cinema, Kleber Mendonça Filho tece uma bela homenagem à memória em seu novo documentário.

“Retratos Fantasmas” é sobre o que foi, é e será. O filme começa com uma longa sequência de décadas filmadas dentro de um apartamento no primeiro andar de um bairro do centro de Recife. Lá, a mãe do cineasta refez a vida com os dois filhos depois do divórcio. Foi nesse lugar que o estudante Kleber começou a flertar com a arte, filmando curtas com os amigos. O espaço serviu de cenário e inspiração para “O Som ao Redor” e “Aquarius” e aponta uma primeira reflexão interessante: a da intersecção entre obra e subjetividade do autor; ou como um filme, ficcional ou não, reflete vivências e percepções de quem o faz.

Inferem-se, nesse contexto, questionamentos sobre as mudanças arquitetônicas da cidade. Em narração em off, o diretor admite que espaços coletivos são mutáveis, mas não deixa de lamentar a descaracterização do local onde cresceu – desde a transformação do seu apartamento em um “bunker” até a derrubada de casas, escolas e cinemas para construção de prédios de luxo, igrejas e shoppings. Expande-se, portanto, o escopo do documentário para uma reflexão mais aprofundada sobre memória e coletividade a partir de uma análise do centro da cidade, decadente, mas charmoso, típico de um lugar rico em histórias.

Foca, a partir de determinado momento, nos cinemas de rua que povoavam o centro, cada um com uma fascinante história e, quase invariavelmente, um trágico desfecho. É celebrado o espaço físico, o caráter coletivo das sessões e sua importância em moldar o pensamento daqueles que o habitam. É pontuada a riqueza de suas linhas arquitetônicas, revelando, por vezes, cabulosos planos políticos por trás dos panos.

Sempre em caráter pessoal, com direito a inserção de notas familiares e impressões de amigos, Kleber usa imagens de arquivo como fonte de argumentação. Ele acena para filmes rodados na cidade, citando nomes dos seus realizadores durante a produção; reconhece os trabalhadores invisíveis do cinema, como a figura do projecionista, indispensável para a criação de uma experiência cinematográfica potente; refaz os passos de fotos e filmagens antigas, que imprimem uma cidade tão diferente da atual.

Forma-se, no meio de tudo isso, uma narrativa potente, coesa e complexa, que exalta o passado e lamenta o caminho social tomado no país – ou, como pontua, em inúmeras cidades do mundo – de maior individualidade, claustrofobia, abandono, sem se esquecer que esses organismos vivos, as cidades, sabem resistir, cada uma a seu jeito.

Essa colcha de retalhos é o grande trunfo de “Retratos Fantasmas”, que emociona ao falar de memória e amor, sobretudo pelo cinema. Este é reverenciado em toda a sua potência e, por isso, é exatamente o tipo de obra ideal para consumo em uma sala com tela grande e pessoas ao redor (preferencialmente se estas seguirem a etiqueta básica de abandonar a vida lá fora para aproveitar a sessão). Ao final, ainda surpreende com uma pequena cena ficcional, quase anedótica, que enaltece o caráter mágico da sétima arte, sua capacidade de suspender a descrença até do mais cínico espectador. Um espetáculo.  

Ficha Técnica

Ano: 2023

Duração: 1h 33m

Gênero: documentário

Direção: Kleber Mendonça Filho

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