O surgimento da televisão criou a necessidade de se buscar uma programação que saciasse os desejos do público. Se no Brasil essa preocupação fomentou uma indústria voltada para as novelas, nos Estados Unidos o modelo adotado foi o dos seriados, que usam personagens carismáticos (ou antissociais, delineamento comum na nova era televisiva) para tratar de temas relevantes para a sociedade.
Dentro deste espectro, criaram-se as sitcoms familiares, onde geralmente um casal heterossexual tenta educar seus filhos e superar dificuldades financeiras e emocionais. São muitas as produções que usam essa construção, desde “The Cosby Show” (que caiu em desgraça com as acusações de estupro do seu criador, Bill Cosby) a “Modern Family”, “Eu, a Patroa e as Crianças”, “Três é Demais”, “The Bady Branch”, “Happy Days”, “Frasier”, “Arrested Development”, “Everybody Loves Raymond”, “Um Maluco no Pedaço” e “Black-ish”. O fato de séries tão diferentes, tanto tematicamente quanto em estilo, derivarem do mesmo molde narrativo nos diz algo sobre a sua facilidade de aceitação por parte dos espectadores.
Este cenário contextualiza o sucesso de “Roseanne”, programa que foi ao ar pela ABC entre 1988 e 1997. Seu apelo era o retrato, embora ficcional, cru e realista da chamada “classe trabalhadora” norte-americana, pejorativamente denominada como “white trash” (lixo branco). A comediante Roseanne Barr tinha suas origens neste contexto social e sentia a falta de sua representação na televisão. Por meio da dinâmica familiar, deu voz a uma personagem que falava mais alto, era menos abastada, possuía um tom mais grosseiro e era bem mais liberal do que as outras mães ficcionais.
Sua abordagem certamente valeu a pena, já que sua série foi uma das mais influentes da década de 90, não só alavancando a carreira da criadora como a de seu companheiro de cena, John Goodman – que migrou para o cinema. Porém, o estilo mais agressivo de comédia de Barr provocou polêmicos incidentes fora da série, como no que ela propositalmente cantou desafinadamente o hino americano, visto pela população como profundo desrespeito. A sucessão de situações como essa, em que seu “humor” não era apreciado, a levou ao ostracismo…. porém, uma nova onda televisiva ofereceu outra oportunidade a ela.
Seguindo a estratégia da indústria cinematográfica, as emissoras de TV começaram a fazer revivals de seus maiores sucessos, o que tem provocado efeitos mistos: “Arquivo X” fracassou em suas intenções; “Will And Grace”, embora das opiniões negativas dos fãs, já foi renovada para mais duas temporadas. Tendo perdido um pouco da sua relevância nos últimos anos, a ABC apelou a Barr por mais episódios de sua sitcom, recebida com entusiasmo pelo elenco original e com descrédito pela imprensa, que reiteradamente chamava a atenção para a radicalização da comediante.
O que os veículos especializados não notavam era a carência da classe trabalhadora que, desde 97, não se via na TV de forma positiva. Esse distanciamento foi agravado pelo modo como o debate político invadiu as obras de ficção desde a última eleição. Grande parte das séries americanas tece críticas extremamente duras ao novo presidente, seja de maneira aberta (“The Good Fight”, “Ela Quer Tudo”) ou metaforicamente (“The Handmaid’s Tale”).
Os republicanos sentiam-se alienados e, por isso, viram a volta de “Roseanne” com extremo entusiasmo – pesquisas demográficas indicam que a preferência pela produção vem da população do meio-oeste, que coincide com os votantes de Trump. No final de março, quando o primeiro episódio da nova (e décima) temporada foi ao ar, todos ficaram surpresos com o tamanho do sucesso: ele atingiu 27.3 milhões de espectadores, 9 mi a mais que a consagrada “The Big Bang Theory” e 12 mi a mais que outra produção de sucesso da ABC, “The Good Doctor”.
É exatamente a narrativa da série que permite a sua análise do ponto de vista político já que, no mesmo molde de outras produções, esta incorporou o debate na dinâmica familiar: os dilemas agora rondam entre as discrepâncias entre a protagonista republicana e sua irmã democrata. Ao longo do primeiro episódio, não faltaram referências a corrida eleitoral, com condenações ao Obamacare, Hillary Clinton (chamada de mentirosa) e até a reprodução do slogan do presidente, “Make America Great Again”, bradado a plenos pulmões por Roseanne. Essa inflamação política, por sua vez, levou o presidente a congratula-la publicamente pelo “ótimo trabalho”.
Ainda que desagrade parte da população e da imprensa pelo conteúdo ideológico e, em especial, pela forma rasa com que ele é jogado no roteiro, é claramente perceptível o apelo que a sitcom detém com as pessoas que apoiam Donald Trump. A sua expressividade está representada nos números: desde o começo da nova temporada, “Roseanne” é a série mais assistida dos Estados Unidos, sendo, dessa forma, o revival que alcançou o maior sucesso até então.