Por Luciana Ramos

O documentarista Alex Gibney inicia o documentário “Sob Controle” com uma poderosa narração em off que rememora os sonhos de evolução da humanidade para um patamar tecnológico avançado que promovesse a quebra de barreiras geográficas e, assim, une-se os povos dos cantos mais distantes da Terra em prol de uma existência melhor.

As aspirações do novo milênio há muito caíram por terra, mas foram como nunca escancaradas diante da imposição da pandemia do novo Coronavírus. Países competindo por recursos, fechando fronteiras e apontando dedos, alguns batalhando com um imperativo monstruoso de desinformação e pouca credibilidade à ciência. Em meio ao caos e divisão, Gibney juntou-se com às diretoras Ophelia Harutyunyan e Suzanne Hillinger para explorar as consequências nefastas de uma política abertamente negacionista e autocentrada. Poderia ser sobre o Brasil, mas o filme dedica-se a relatar os desmandos de Donald Trump durante os primeiros cinco meses de circulação do vírus em território americano.

Por meio de centenas de entrevistas e desenvolvimento de aparatos tecnológicos que garantissem a segurança dos cientistas, políticos, médicos e especialistas que se dispuseram a falar, os diretores obtiveram um detalhado recorte de um momento histórico que, embora já defasado por natureza, serve como um retrato nefasto do potencial destrutivo de um líder descompromissado e incompetente.

Além do luto coletivo pelo número de mortos, o país sofre com o estresse extremo dos profissionais de saúde, a demissão de especialistas que optaram por defender a ciência, o desmonte institucional de programas federais de coordenação de crise – elementos que, unidos, representam o fracasso de uma sociedade em todos os seus níveis. Ao centro, estão as populações negras e menos ricas, que sofrem e morrem mais, como se seus corpos fossem descartáveis.

O discurso covarde disfarçado de bravura machista de Trump impunha a todos que se sacrificassem em prol da economia, um argumento imoral por si só, mas que, ademais, representa desconhecimento das leis que regem os mercados, jamais seguros em ambientes voláteis. Ao expressar descrédito com o potencial aniquilador da Covid-19, o então presidente dos Estados Unidos não só demonstrava desrespeito aos mortos, como tentava sistematicamente apagá-los dos registros oficiais para não ter suas chances eleitorais prejudicadas.  

Por meio de uma descrição cronológica dos fatos, embasados por documentos oficiais, “Sob Controle” demonstra com frieza objetiva o fracasso da estratégia federal de evasão das responsabilidades. Neste contexto, alguns fatos chamam a atenção, como a falta de máscaras N95 (criadas nos EUA e, mais tarde, terceirizadas) para profissionais de saúde, condenados a reusarem materiais comprados na época da epidemia de Ebola; o cancelamento de um comitê especializado em pandemias criado no governo Obama; e o afunilamento dos institutos autorizados a criarem testes RT-PCR, o que acarretou na distribuição de material defeituoso e, por conseguinte, atrasou ainda mais o controle da propagação do vírus.

Elencados de maneira pouco sentimental e organizada pelas pontuações em voz off de Gibney, o longa demarca-se como um registro histórico, renunciando a reflexões humanistas ou pessoais acerca dos fatos visto que, como a própria obra pontua, tais questões ainda devem passar pelo filtro do tempo para se delinearem com toda a clareza. O recorte, porém, não impede a grandeza de “Sob Controle”, que se revela chocante, triste e desconfortavelmente similar à experiência brasileira, outra vítima do negacionismo oportunista. Em contraponto, há a exposição sistemática do modelo de enfrentamento da Coreia do Sul como uma possibilidade de aprendizado social, científico e político, um patamar de sofisticação que, no momento, podemos apenas sonhar em atingir.  

 

Essa crítica faz parte da cobertura do 26° Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade

Ficha Técnica

Ano: 2020

Duração: 123 min

Gênero: documentário

Direção: Alex Gibney, Ophelia Harutyunyan, Suzanne Hillinger

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