Por Luciana Ramos

 

Em sua fase de maior produção, o cinema nacional segue uma trajetória diversa e não-linear, apoiando-se tanto na tradição de crítica social (fortemente pautada no conceito de autor) quanto na criação de longas-metragens direcionados para o apelo comercial. Ainda raramente surgem filmes que encantam pela sua capacidade de transgredir tais limites, mas este não é o caso de “Socorro, Virei uma Garota!”

Usando uma premissa tão velha quanto hollywoodiana, o filme dirigido por Leandro Neri propõe-se a destrinchar os dilemas do adolescer através da velha dinâmica de troca de gênero – esta sempre acompanhada de um acontecimento cósmico único e pouco fundamentado. A trama nos apresenta Júlio (Victor Lamoglia), que sofre por se sentir deslocado tanto no ambiente familiar quanto no escolar. Após uma humilhação durante uma viagem com os colegas, ele, ao avistar um meteoro, pede para ser a pessoa mais popular do colégio.

Acorda então como Júlia (Thati Lopes), uma menina que conseguiu moldar uma imagem de perfeição graças a união de roupas justas, maquiagem excessiva e o uso da “má fama” a seu favor. Curiosamente, não só a sua vida mudou, como a do seu pai e irmão, que passaram de obcecados por academia para homens relapsos e sem autoestima. Desesperado, ele procura Cabeça (Léo Bahia), seu único amigo da vida passada, para ajudá-lo a retomar seu corpo de origem. No entanto, a proximidade com Melina (Manu Gavassi), de quem sempre gostou, o leva a ponderar suas possibilidades de futuro.

Construído ao redor do talento de Thati Lopes, o longa oferece diversas oportunidades para ela explorar suas habilidades cômicas, mesclando momentos que exigem entrega física à inevitável sucessão de expressões exageradas que servem para pontuar a sua estranheza diante dos acontecimentos. Já o seu contraponto, Victor Lamoglia, não consegue evitar a armadilha da caricatura (notada em especial no seu andar trôpego), negando assim a necessária densidade ao seu personagem.

Ainda que seja incômoda, a desarmonia entre as abordagens dos atores a um mesmo personagem nem de longe é o maior problema da produção. Despreocupado em fundamentar as ações dramáticas, o roteiro joga na esfera da conveniência, apresentando e modificando situações ao seu bel-prazer. Nota-se, em alguns momentos, pequenos esforços em traçar comentários sociais – seja da diferença entre projeção da imagem e essência ou na decisão em alterar bruscamente a dinâmica familiar – porém, sem o devido cuidado, eles perdem função, denunciando o caráter superficial do todo.

Este, por sua vez, torna-se alarmante quando o filme decide afastar-se da trama principal para abordar o relacionamento entre mãe e filho/filha: ainda que isoladamente funcione, a cena, carente do investimento anterior em uma fundamentação argumentativa, não consegue provocar a identificação emocional desejada e, por isso, perde relevância.

Assim, “Socorro, Virei uma Garota!” não consegue ultrapassar a barreira das piadas fáceis envolvendo seios, garotas e estereótipos de modo geral. Nisso, encaixa-se o retrato pouco inspirado de Renata (Lua Blanco), irmã de Cabeça, referenciada de forma chula por toda a narrativa. Ao final, a razão de existir deste filme permanece um mistério; a sensação predominante é a de frustração. Nem sempre o cinema nacional acerta.

Ficha Técnica

Ano: 2019

Duração: 120 min

Gênero: comédia

Direção: Leandro Neri

Elenco: Thati Lopes, Vanessa Gerbeli, Nelson Freitas, Victor Lamoglia, Léo Bahia, Kayky Brito

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Avaliação do Filme

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