Por Luciana Ramos

A família real inglesa, diante de seu histórico de poder, escândalos e pompa, é alvo de intenso escrutínio público, por vezes refletido em obras audiovisuais que se debruçam a refletir como a engrenagem institucional pode, eventualmente, aprisionar seus membros. Um dos exemplos mais famosos e recentes é a série “The Crown” que, embora questione as ações da Rainha e seus familiares, oferece um olhar predominantemente compreensivo.

Outras obras, como “A Rainha” e “Diana”, investiram nas feridas emocionais das rusgas familiares para tecer narrativas que, invariavelmente, propõem-se a homenagear a sua figura mais popular, Lady Diana. Conhecida como “rainha do povo”, ela permanece interessante décadas após sua morte (foi vítima de um brutal acidente de carro em 1997) por ser dicotômica: era gentil, mas desafiadora; tímida, mas sabia impor sua visão; maternal com seus filhos, mas sofreu por muitos anos pela falta de amor e respeito do marido, o Príncipe Charles.

Em “Spencer”, o diretor Pablo Larraín opta em “Spencer” por se despir da precisão histórica, substituindo o arco narrativo conservador por uma teia angustiante de conflitos externos que se exacerbam na mente de Diana (Kristen Stewart), uma mulher que se sente aprisionada na sua família. Obrigada a passar três dias na companhia da Rainha, seu marido (que a trai abertamente), cunhados e afins, ela tem todos os passos controlados: não é possível andar, comer ou sussurrar sem ser ouvida e, invariavelmente, repreendida. As míseras tentativas de satisfação, seja no atraso para eventos ou na escolha do que vestir, são vistos como desafios às regras institucionais da Coroa e, dessa forma, Diana não parece ser mais que um fardo para sua família – com exceção dos seus filhos, William (Jack Nielen) e Harry (Freddie Spry), com quem tem uma relação amorosa e de mútua proteção.

Apostando no surrealismo de algumas passagens e na elaboração de uma estética por vezes sufocante (nos closes julgadores dispendidos à protagonista) e, em outras, fantasmagórica (dada à neblina que marca as passagens externas), Larraín constrói um panorama complexo que reflete a profunda crise existencial que levou Diana a pedir o divórcio após o Natal de 1991. As costumeiras brigas de casal são substituídas por assombrações do passado – sejam a da infância dela ou da própria realeza – que aprofundam a sua sensação de solidão, em especial no fato de ela ser incapaz de enxergar seu futuro nessa configuração.

Na trama, todos os eventos descritos são colocados em função da sua protagonista, considerando apenas a sua visão dos fatos. As belíssimas montagens que exploram seu espírito livre e criativo se unem a cenas em que desconta a pressão que sofre na comida. Acuada e sem ter certeza de conseguir manter a própria sanidade, Diana transita tentando se agarrar a qualquer fio de esperança. É nesse sentido que os demais personagens também interagem com ela, sejam para afastá-la do seu objetivo (Charles e a Rainha Elizabeth) ou aproximá-la (Darren e Maggie).

Interessante e bem construído, “Spencer” possui um apelo sensorial e intimista que o leva a ser uma produção mais eficaz do que “Jackie”, tentativa anterior do diretor em se debruçar sobre uma figura histórica que tenta contar sua versão dos fatos, Jackeline Kennedy. Em ambos os longas, há a proposta de se tecer comentários sobre mulheres adoradas publicamente que se viram, em determinado momento de suas vidas, diante de estruturas familiares de poder muito maiores que imaginavam, mas, ao abandonar a pretensão de se propor como uma biografia, “Spencer” conseguiu transpor melhor a essência de Diana.

No centro, está a atuação brilhante de Kristen Stewart. A atriz, que há muito vem demonstrando talento em filmes independentes, entrega-se por completo no papel. Sua voz ganha contornos roucos e falhos, expondo latente insegurança. Seu corpo exprime o horror de sentir-se presa – o baixar de cabeça, o dobrar do corpo, a curvatura das costas – sem nunca chegar a um patamar caricatural. Seus olhos, por vezes chorosos, exprimem sensibilidade, alternando entre o medo e a vontade de se impor. Atuando sempre em linha tênue, ela consegue traçar um perfil psicológico complexo que ajuda na imersão no mundo de Diana.

“Spencer” perpassa o horror, o suspense psicológico e o melodrama com fluidez e elegância, apostando na contraposição de closes e grandes takes panorâmicos, trilha sonora impactante e atenção aos detalhes, do figurino ao design de produção.

Ficha Técnica

Ano: 2021

Duração: 1h57min

Gênero: drama

Direção: Pablo Larraín

Elenco: Kristen Stewart, Timothy Spall, Jack Nielen, Freddie Spry, Jack Farthing, Sean Harris

Veja Também:

A Paixão Segundo G.H.

Por Luciana Ramos   Publicado em 1964, “A Paixão Segundo G.H.” foi há muito considerado um livro inadaptável, dado o...

LEIA MAIS

O Menino e a Garça

Por Luciana Ramos   Aos 83 anos, Hayao Miyazaki retorna da aposentadoria com um dos seus filmes mais pessoais. Resvalando...

LEIA MAIS

Zona de Interesse

Por Luciana Ramos   O primeiro minuto de exibição de “Zona de Interesse” é preenchido por uma tela em preto...

LEIA MAIS