Por Luciana Ramos

 

Nas décadas de 60 e 70, Agrolândia era uma cidade pequena e pacata, onde os dias passavam devagar e qualquer acontecimento mobilizava vizinhos e parentes, dado o ócio que imperava. Entre os seus habitantes, destacava-se um homem mais velho, inglês e com uma perna de pau que se recusava a dar muitas informações da sua vida pessoal e mantinha os laços afetivos exclusivos à família da sua esposa, Mary (Ilma por batismo, mas que teve um nome novo dado por ele).

Conhecido carinhosamente como tio Tommy, o senhor que insistia em se comunicar em inglês passava os dias escrevendo folhas que ninguém lia, jogando cartas ou fumando charuto em encontros casuais onde optava por relembrar apenas seus feitos mais gloriosos: o cargo de piloto na Primeira Guerra Mundial e a fundação da revista Newsweek. Em contraste, as versões sobre sua chegada à cidade, seu sustento na época ou outros detalhes sobre trabalhos prestados eram despedaçados, confusos e pouco sedimentados na realidade.

Interessada nas discrepâncias entre as narrativas da vida de Thomas J. C. Martyn, a diretora Loli Menezes constrói uma colcha de retalhos de informações que a conduz a possibilidades fascinantes. O seu documentário começa com os depoimentos daqueles que conviveram com o homem em seus anos finais, uma coleção de histórias desconexas filmadas de maneira casual – câmera trêmula à mão – que impõem um ar de informalidade ao filme.

Em seguida, inicia uma espécie de road movie investigativo, passando pelas raízes de Thomas na Inglaterra e sua performance enquanto piloto (onde são apontados os primeiros indícios de supressão de informações indesejadas) para então seguir aos Estados Unidos, onde foi viver após a Primeira Guerra Mundial. Lá, consegue o emprego de correspondente internacional da Time – sem ser formado em jornalismo ou coisa alguma, de fato – e contribui com sua expansão, até a mudança para o New York Times. Visando a necessidade de uma revista mais objetiva que apontasse de maneira concisa os acontecimentos da semana, decide fundar a News-week (inicialmente grafada com hífen, a seu contragosto) com a ajuda de famílias importantes, como os Roosevelt e os Rockfeller.

Para descrever sua trajetória de ascensão, o documentário rende-se à tradicionalidade, compondo a narrativa com o cruzamento de depoimentos e imagens de arquivo. Os enquadramentos cedem à rigidez conservadora, mas são contrabalançados pelos detalhes peculiares da jornada de um self-made man importado da Inglaterra. Neste ponto, o filme muito se beneficia da pesquisa previamente conduzida por três netos de Martyn, frutos do seu segundo casamento. Capazes de apresentarem detalhes curiosos do nascimento da Newsweek e sedimentarem pontos importantes da sua experiência americana, eles mostram-se tão empolgados quanto à cineasta em vasculharem o passado do avô em busca de preencher as demais lacunas da sua vida.

O último ponto de virada da vida de Thomas Martyn acontece quando, após um duro golpe, ele se muda para a América Latina no final da Segunda Guerra Mundial, deixando mulher e filhos – que supostamente viriam encontrá-lo, mas nunca o fizeram. Muito menos embasado que os estágios anteriores, este trecho guia-se por pistas que implicam a colaboração do homem com algum serviço de inteligência americano, tendo supostamente trabalhado para “combater a ameaça comunista no Brasil” e, portanto, servido aos interesses políticos e econômicos dos Estados Unidos no continente. Poderia o pacato senhor de Agrolândia ter sido um espião?

O documentário especula as possibilidades com a ajuda de especialistas em história, relações internacionais e política, que apontam comportamentos suspeitos de Thomas (como as inúmeras mudanças de nomes em seus documentos), assim como um contexto geopolítico que justificaria suas ações. Ainda que não consiga comprovar a teoria, “Tio Tommy – O Homem que Fundou a Newsweek” chega bem perto. Embora oscile bastante em ritmo e estética, sabe mergulhar fundo na riqueza da vida de um homem que foi herói, empresário, possivelmente espião e recluso, tudo embalado em uma só vida.

 

Essa crítica faz parte da cobertura do 26° Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade

Ficha Técnica

Ano: 2021

Duração: 94 min

Gênero: documentário

Direção: Loli Menezes

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