Por Luciana Ramos

 

As pinceladas autobiográficas no roteiro de “Tully” tornam impossível a sua apreciação crítica sem dissecar as intenções de sua escritora, Diablo Cody. Surgida na cena hollywoodiana com o cool e tocante “Juno”, ela logo assumiu a persona de outsider que tinha um ponto de vista forte sobre o mundo, exprimido em diálogos repletos de gírias e ironias.

Seu avanço no mundo cinematográfico levou a repetição da parceria com o diretor Jason Reitman em “Jovens Adultos”, com a inclusão da atriz Charlize Theron no processo colaborativo. Menos coeso e substancial do que sua obra anterior, acabou com uma recepção morna nas bilheterias, o que a impulsionou a projetos mais formulaicos (como “Ricki and the Flash: De Volta Para Casa”) e genéricos (como a adaptação de um filme sobre a boneca Barbie, cancelado após anos de devoção).

Em “Tully”, ela retorna ao tema da maternidade e, mais importante, à sua essência enquanto contadora de histórias: a análise do comportamento humano através de uma experiência específica e transformadora. Se em “Juno” estabelece-se um paralelo direto entre a imaturidade da protagonista e o peso da responsabilidade que assume ao ficar grávida, em “Jovens Adultos” transparece-se a vontade de permanecer em um estágio adolescente, em negar uma existência mais adulta e, consequentemente, “chata”, recheada por prazos, problemas com dinheiro e necessidade de encontrar seu lugar no mundo.

 

Nesse sentido, seu novo filme representa um avanço nessa narrativa. A sua escrita derivou-se do esgotamento físico e mental que sentiu em conciliar seu trabalho e a criação de três filhos. O mesmo sentimento é experimentado por Marlo (Charlize Theron) que, sem a ajuda efetiva do marido (Ron Livingston), dividido em viagens e horas dispensadas a jogos de videogame, tem estado sonolenta e irritadiça.

Sua personagem é apresentada no limite, claramente fracassando no papel social esperado de uma mãe: a casa sempre suja, a comida congelada servida no jantar, a impaciência extravasada em gritos com os filhos e, em determinado momento, com a diretora da escola deles.

Ver a completa transformação da sua personalidade leva seu irmão (Mark Duplass) a indicar uma babá noturna. Relutante, Marlo contrata Tully (Mackenzie Davis), que logo se revela uma figura mítica, uma Mary Poppins moderna, que não só cuida da bebê como limpa, cozinha e ajuda nos problemas conjugais – sob a justificativa que é preciso consertar todas as partes defeituosas afim de se obter uma vida harmoniosa.

Sua aparição transborda o adormecido desejo da protagonista em aproveitar a vida, o que culmina no questionamento dos caminhos que adotou. A jovem babá, por sua vez, lembra-a constantemente que o “marasmo” que ela reclama (de ter uma vida tranquila com marido e filhos) é o objetivo de muita gente. Sem muita confiança em tais palavras, Marlo aproveita a oportunidade para, gradualmente, se lançar mais uma vez ao mundo, com maquiagem, exercícios e álcool, uma sucessão de escolhas que a conduzirá a uma jornada engrandecedora.

 

A partir da interação das duas, a trama aborda um instante posterior aos roteiros passados de Cody: uma mulher que assumiu todas as responsabilidades e encontra-se esgotada, sem forças, perdida. A mera presença de um espírito jovem e desprendido a leva a querer de volta a juventude inconsequente, algo que entra em direto conflito com o seu apego e amor pelos filhos.

Com um realismo brutal, “Tully” faz um retrato nada glamouroso da maternidade, enaltecendo os seus percalços, mesclados aos pequenos momentos de pura felicidade – uma abordagem nova ao cinema. Sabendo do potencial narrativo do seu filme, Jason Reitman suaviza seu apelo estético, valorizando as passagens dramáticas através do uso de câmeras na mão, sempre trêmulas e em movimento.

As cenas são costuradas por um intricado trabalho de montagem, que manipula o ritmo da ação narrativa com inteligência. Ao começo, quando Marlo mal consegue dar conta da sua rotina, cenas fragmentadas unem-se com a rapidez que transparece a repetitividade das suas ações. Paulatinamente, à medida em que ela assume o protagonismo de sua vida, esse ritmo dilata-se, demonstrando visualmente o seu ganho de equilíbrio.

Grande parte do êxito da produção deriva da entrega de Charlize Theron ao papel. Os seus movimentos corporais arrastados unem-se a expressões que variam do desânimo absoluto a momentos de excitação nostálgica. Com carisma, ela consegue transmitir a verdade de sua personagem sem nunca a relegar a um patamar superficial.

O humor vem em comentários irônicos das situações cotidianas, mas “Tully” não se resume à busca de piadas: o objetivo é retratar de forma complexa – e sem julgamentos morais – a experiência de uma mãe, um salto qualitativo no trabalho autoral da roteirista Diablo Cody. Junto a Theron e Reitman, ela encontra terreno fértil para exprimir suas percepções, muito mais aprofundadas do que aparentam de início.

 

  Pôster:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ficha Técnica:

 

Ano: 2018

Duração: 95 min

Gênero: comédia, drama

Direção: Jason Reitman

Elenco: Charlize Theron, Mackenzie Davis, Ron Livingston, Mark Duplass

 

Trailer:

 

 

Imagens:  

Avaliação do Filme

Veja Também:

Rivais

Por Luciana Ramos Aos 31 anos, Art Donaldson (Mike Faist) está no topo: além de ter vencido campeonatos importantes, estampa...

LEIA MAIS

Guerra Civil

Por Luciana Ramos   No fascinante e incômodo “Guerra Civil”, Alex Garland compõe uma distopia bastante palpável, delineada nos extremos...

LEIA MAIS

A Paixão Segundo G.H.

Por Luciana Ramos   Publicado em 1964, “A Paixão Segundo G.H.” foi há muito considerado um livro inadaptável, dado o...

LEIA MAIS