Por Luciana Ramos

Em seu debut diretorial, Celine Song constrói uma história simples, porém poderosa sobre os caminhos da vida – ciclos, romances e predestinação – a partir do olhar de três pessoas que buscam entender os significados de suas escolhas. O filme começa com a descrição da relação entre os jovens Nora (Greta Lee) e Hae Sung (Teo Yoo), ambos com doze anos. Eles estão em uma fase de descobertas e parecem se gostar bastante, a ponto de suas mães organizarem um encontro. No entanto, este servirá também como despedida, já que a família da menina está prestes a imigrar para o Canadá. A conexão entre eles, sedimentada por este dia, causa impressões duradouras aos dois, que carregam a experiência na memória como uma aba aberta.

Doze anos mais tarde, o estudante de engenharia Hae-Sung encontra Nora pelo Facebook. Ele rapidamente entra em contato e os dois, separados por milhares de quilômetros de distância, alimentam planos de uma reunião em videoconferências entrecortadas – pela precariedade da tecnologia e a impossibilidade em ajustar horários bons para os dois. Há um sentimento de intimidade que se forma, muito por conta da predisposição de ambos em se abrirem para o diálogo (coisa que não parecem fazer com outras pessoas próximas). A potência do reencontro, ainda que virtual, alimenta a relação por um tempo, mas, invariavelmente, se dilui em limitações e põe um fim ao relacionamento.

O filme faz então seu último e mais importante salto temporal, adicionando mais doze anos na equação. Nora é uma dramaturga de sucesso em Nova York, onde mora com o marido e colega de trabalho, Arthur (John Magaro). Os dois têm uma relação ótima – pacífica e rotineira – que é testada quando Hae-Sung a entrar em contato com a amiga de infância para lhe informar que está a caminho da cidade onde ela mora e gostaria de lhe encontrar.

Abre-se, nesse momento, um confuso leque de possibilidades na cabeça de Nora: seria ele o seu destino? O que teria acontecido se não tivessem parado de se falar? Ela está de fato satisfeita com a relação que molda a sua vida? É importante destacar que em momento algum a trama caminha para o melodrama, explorando conceitos de traição ou apelo carnal, algo do tipo. Não. O interesse de Song é tecer uma meditação sobre escolhas (“e se…”) a partir das três experiências, debatidas abertamente pelos personagens.

Para Hae-Sung, o reencontro com Nora é uma oportunidade para contemplar possibilidades e reavaliar sua vida: vê-la de perto, tocá-la e chegar a conclusões sobre temas que lhe assombram há muito tempo. Para Nora, é uma chance de reencontrar sua origem, trocando ideias e impressões com alguém do mesmo lugar que ela, na sua língua nativa, com quem compartilha impressões culturais profundas.

Curiosamente, em determinado momento ela diz ao marido que um fenômeno intrigante acontece quando ela conversa com Hae-Sung: Nora se sente mais coreana ao seu lado e, ao mesmo tempo, mais americana. Ao passo que a familiaridade do idioma a aproxima de elos muito pouco cultivados por causa da imigração, as diferenças de visões de mundo e ambições são gritantes, já que são indissociáveis da vivência social do lugar onde habitam.

Mesmo assim, a potência do reencontro abre uma dúvida cruel na cabeça da protagonista, que é perfeitamente compreendida por Arthur. Sendo ele mesmo um escritor, o personagem entende a beleza romântica possível nesse reencontro; por gostar da esposa, lamenta a possibilidade de perdê-la – abertamente, acompanhando de maneira sóbria, embora simpática, os dois a um bar na madrugada de Nova York. Sem entender o que dizem, Arthur observa melancolicamente Hae-Sung e Nora e contempla sua própria vida.

As ponderações de cada personagem vão além do romance, beirando o existencialismo, já que cada um se pergunta como foi parar naquele momento e reflete com um pouco de angústia o que seria de suas vidas se tivessem mudado apenas uma decisão. Ao centro, está o conceito de vidas passadas que nomeia o filme. Na cultura coreana, diz-se que quando duas pessoas se esbarram e há uma conexão, significa que suas vidas já se cruzaram outras vezes, e essas camadas de encontros vão se somando. É uma elaboração bonita e que ajuda a explicar a melancolia da protagonista, mas não esgota o tema: como todo bom diretor, Celine Song prefere abrir questionamentos e reflexões ao invés de oferecer respostas prontas.

Sua câmera passeia de maneira eficiente, mas sem embelezamentos desnecessários pela cidade, deixando os personagens falarem mais alto. É o tipo de sutileza que ajuda na construção de uma narrativa mais fluida. Outro ingrediente fundamental é o elenco. O rosto de Greta Lee é o condutor da história: suas pausas e reticências fundamentam os questionamentos de Nora e incitam reflexões ao público. O jeito contido, porém, ansioso de Teo Yoo representa a esperança gritante de mudança que Hae-Sung nutre, cerceada pelo limite moral de respeitar a relação dos dois “amigos”. Já John Magaro indica o desespero silencioso com seus olhos marejados. O ator consegue traduz com precisão a inquietude de seu personagem, espectador passivo do seu próprio destino.

Produzido pela A24, “Vidas Passadas” é elegante em sua simplicidade, mas incrivelmente forte. Seu caráter reflexivo emociona e denota grande talento da diretora Celine Song em seu primeiro trabalho no cinema. É uma obra meditativa, que acompanha o espectador muito após o término da sessão.

Ficha Técnica

Ano: 2024

Duração: 1h 45m

Gênero: drama, romance

Direção: Celine Song

Elenco: Greta Lee, Teo Yoo, John Magaro, Moon Seung-ah, Leem Seung-min

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