Por Luciana Ramos
“Você é o que todos se tornarão um dia”, diz a doutora Ouelet (Juliette Binoche) à Major Mira Killian (Scarlett Johansson). Designada como “a primeira de sua espécie”, é tida como a perfeita simbiose entre homem e máquina: seu cérebro é humano, dotado de inteligência e sensibilidade; seu corpo, robótico, capaz de uma performance muito superior à dos homens dada a conexão com sistemas de dados, além da capacidade de regeneração.
Major, como é comumente chamada, é fruto de um experimento em uma sociedade distópica, onde pessoas trocam partes de seus corpos por modelos sintéticos, o chamado cyberaperfeiçoamento. Sua mente humana tem problemas em sentir-se no corpo que ocupa – mas cuja posse esta nas mãos da corporação para que a criou, Hankka Robotics. Diante de sua condição única, questionamentos sobre o seu senso de humanidade afloram.
A discussão existencial torna-se mais forte na missão designada pela Seção 9: achar e eliminar o misterioso Kuze (Michael Pitt), que vem matando cientistas importantes da já citada corporação. Seu encontro, no entanto, leva a protagonista a questionar a verdade, seu senso moral e, acima de tudo, sua identidade humana.
Baseado em um mangá de sucesso, “A Vigilante do Amanhã: Ghost in the Shell” referencia a todo tempo a adaptação cinematográfica de 1995, dirigido por Mamoru Oshii. De fato, os momentos mais impactantes do filme de Rupert Sanders parecem cópias exatas do anterior, tornando a estética o forte desta produção. Desde a ambientação, que trocou o verde preponderante do anime pelo colorido de hologramas gigantes às funcionalidades de cada aperfeiçoamento, passando pelo apelo visual de gueixas-robôs e complexas redes neurais, tudo revela-se um banquete para os olhos.
Por baixo da estética envolvente, há uma simplificação importante da trama, que despreza grande parte do teor politico e, a partir do segundo ato, faz o mesmo com os questionamentos de Major, que passam a habitar níveis mais superficiais. O longa de Sanders não consegue atingir o componente filosófico da trama e, por conseguinte, a melancolia tão bem pontuada na obra de Oshii. Ainda assim, é possível sua apreciação como um filme policial, com eficientes passagens de ação e bem embasado até o último ato, onde o simplismo hollywoodiano assume, culminando em um final piegas.
Todos os elementos levantados até então, no entanto, não obliteram uma importante questão que concerne a produção como um todo: as acusações de whitewashing. A escalação de Scarlett Johansson no papel principal levantou a ira daqueles que pregam o fim da neutralização das raças por um denominador comum caucasiano nos filmes. As críticas mostram-se fundamentadas no longa, já que a megalópole que permeia a ação dramática possui características orientais, desde as construções típicas que aparecem nas alucinações da protagonista aos transeuntes, predominantemente asiáticos.
No entanto, ainda que a cultura seja essencialmente japonesa, como simbolizada pelas já citadas gueixas-robôs, os papeis principais foram designados a atores brancos: além de Johansson, Michael Pitt e Juliette Binoche são outros exemplos. A aparição do venerado ator e diretor Takeshi Kitano, embora fundamental, ocupa pouquíssimo espaço de tela e seu japonês, contraposto ao inglês falado pela maioria, nem de longe sana o problema.
Tal debate foi incorporado ao próprio roteiro e a solução encontrada é igualmente preocupante: clama-se que a “casca” ocupada pelo cérebro, o seu corpo, não tem identidade, ou seja, seu formato não importa. Porém, discursos enaltecendo Major como “o futuro” ou o exemplo da perfeição levam ao raciocínio de que este seja branco, o que é de um reducionismo ultrajante. Não obstante, o nome real de Major, quando revelado, bota ainda mais lenha na fogueira.
Toda a polêmica em torno da prática de whitewashing pode revelar-se um sinal de mudança, de não conformidade ao uso da cultura como decoração e ao retrato por vezes estereotipado de raças no cinema. Nesse âmbito, “A Vigilante do Amanhã: Ghost in the Shell” é mais um ponto da equação, ainda em construção. Aqueles que conseguirem ultrapassar a questão acharão no filme um divertimento satisfatório, pontuado pelo capricho estético. Aos que clamam por novas representações no cinema, mais aprofundadas e fidedignas, recomenda-se assistir ao excelente anime “Ghost In The Shell”.
Ficha técnica
Ano: 2017
Duração: 107 min
Nacionalidade: EUA
Gênero: ação, crime, drama
Elenco: Scarlett Johansson, Michael Pitt, Juliette Binoche, Takeshi Kitano
Diretor: Rupert Sanders
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