Por Luciana Ramos

Um chef talentoso em luto que assume a restaurante meia boca do irmão e tenta instituir ordem ao caos… O sucesso da primeira temporada de “O Urso” deu-se pela primazia do texto, que conseguia explorar a tensão na dinâmica entre cozinheiros com níveis de experiência diferentes, forçados a lidar com o luto e as mudanças em um ambiente claustrofóbico. Ao centro, estava Carmen Berzattto (Jeremy Allen White), um rapaz bem-intencionado, mas completamente perdido que buscava um meio-termo entre suas ambições e a responsabilidade de carregar o legado do irmão.

Eis que, ao final da primeira leva de episódios, ele enxerga a possibilidade de transformar o local em seu emprego dos sonhos. Para isso, faz um acordo pouco lógico com o tio Jimmy (Oliver Platt) – um empréstimo com prazo apertado para pagamento, que concede à empreitada um ar de aposta “tudo ou nada” e alimenta a tensão da segunda temporada. Esta, portanto, se passa entre as doze semanas de reformas estruturais, resolução de pendências administrativas e treinamento da equipe que, caso der certo, se transformarão ao final em um restaurante chique, conceitual e, quiçá, digno de uma estrela Michelin.

Uma sequência bem-humorada em que Carmy tenta esboçar os custos da reforma em uma caixa de pizza mostra que ele é péssimo em contas e, por isso, sua irmã Natalie (Abby Elliot) se prontifica a gerenciar o processo. Ao seu lado está a sous chef Sidney (Ayo Edebiri), responsável por buscar gosto e identidade para o novo empreendimento, intitulado “The Bear”. Em meio ao processo, Carmy reencontra uma colega do passado, Claire (Molly Gordon), e começa a dividir seus polos de atenção, causando inescapáveis atritos.

A quietude que o novo relacionamento traz leva o protagonista a se questionar se ele merece o romance, o que significa a palavra diversão ou se até mesmo amar lhe tira o foco que precisa para o trabalho. Afinal, de onde vem sua realização? A confusão mental proveniente da felicidade indica uma expansão na configuração psicológica do personagem: seus problemas vão muito além do trágico desfecho do irmão e sua busca por superação é impulsionada por um sentimento latente de inadequação, incapacidade, uma necessidade de provar o seu valor – que ele exercita na criação de pratos.

De forma mais escancarada, é o mesmo que ocorre com Richie (Ebon Moss-Bachrach), acostumado a ser humilhado, visto como um fardo e que, por meio de um estágio (e cenário de um dos melhores episódios da temporada, “Garfos”) redescobre um senso de propósito. Sidney, por sua vez, possui uma facilidade em se enrolar nas próprias ideias. Ela parece se deixar levar pela obrigação de atingir a excelência que, conforme descobrimos com o desenrolar dos episódios, é fruto da visão de mundo do seu pai.

“O Urso” faz uma escolha ousada em desconstruir o molde que o conduziu ao sucesso, mas prova-se muito melhor quando se permite explorar cada personagem a fundo, estabelecendo suas inquietações em episódios (quase) solo, que nos ajudam a entender como cada um processa mudanças, e como uma pequena virada de atitude, preparo mental ou físico pode ser determinante para o sucesso ou fracasso de suas ambições. O mais interessante é que todos eles parecem estar melhor quando separados: o ambiente do restaurante parece impulsionar a repetição de padrões de comportamento pouco desejáveis, instalando invariavelmente uma aura de caos – embora todos se esforcem muito mais agora para manter o respeito.

O trunfo do excelente roteiro é exatamente oferecer a empatia necessária a cada um sem deixar de explorar as suas imperfeições e seu efeito borboleta. Nesse sentido, o episódio essencial da temporada é “Peixes”, que apresenta a família Berzatto em flashback, pouco antes da morte de Mike (Jon Bernthal). O ambiente caótico é centrado na ideia de Donna (Jamie Lee Curtis) em cozinhar sete pratos de peixe frescos em uma ceia de Natal, honrando um tradição ítalo-americana. Aos poucos, diante da impossibilidade da tarefa e incapacidade de pedir ajuda, ela vai se rendendo ao ressentimento, dor e mania em uma fusão perigosa. O clima é absolutamente enervante e ajuda a sedimentar alguns pontos da personalidade dos seus três filhos, Natalie, Mike e Carmy.

Porém, o mais curioso é o que vem depois. Até esse ponto da série, somos levados a crer que as atitudes de Carmy – sua ansiedade, sentimentos autodepreciativos e obstinação por grandeza – derivam de uma jornada intensa tanto na cozinha como na vida pessoal, marcada pela perda de uma figura importante. No entanto, após a apresentação de um comportamento perturbador de sua mãe, somos provocados a questionar as semelhanças entre os dois. Seria ele o elemento de caos daquele restaurante? Suas aspirações extrapolam parâmetros desejáveis? As suas deficiências sociais provêm de traumas passados ou derivam-se de questões psicológicas mais profundas? É um ponto narrativo bastante interessante e que permanece aberto para ser explorado na terceira temporada, já confirmada.

Visualmente, a série também deu grandes saltos. O confinamento claustrofóbico, tão bem captado nos episódios iniciais, é transformado em um mix de planos concisos e estáticos com outros, turbulentos. O ar documental que rege a produção é mantido, com investimento em sequências panorâmicas e granuladas da cidade de Chicago, que determinam a vibe local. Ambientes de maior controle, como as cozinhas de grandes chefs visitadas por Marcus (Lionel Boyce) e Richie, são marcadas pela luz branca, higiênica e controladora, e planos abertos ou closes estáticos. Já a rotina de obras e problemas do “The Bear” é pontuada pela câmera na mão, que registra a ansiedade e medo comuns à todos da equipe. Alguns paralelos visuais também são interessantes, como o que demarca o relacionamento de Claire e Carmy: eles se reencontram em frente a uma geladeira no supermercado e têm uma conversa pivotal separados por uma câmara fria.

A humanidade que perpassa cada personagem é fruto do excelente elenco, que eleva o texto com expressões de vulnerabilidade e trabalho corporal impecável: cada um, ao seu jeito, consegue transmitir a dor, cansaço e resiliência presentes no projeto. Jeremy Allen White, Ayo Edebiri e Ebon Moss-Bachrach brilham nas reticências que incutem em seus papéis, além de saberem explorar muito bem o lado cômico de cada situação, oferecendo leveza mesmo nos momentos mais tensos. Outro aceno indispensável vai para a performance de Jamie Lee Curtis como Donna Berzatto. Ela está arrebatadora nos dois episódios em que aparece, expondo a fragilidade de sua personagem de forma crua e potente. Definitivamente, deveria ganhar um Emmy de participação especial pelo papel.

Afastando-se da configuração inicial, a segunda temporada de “The Bear” eleva os componentes que tornaram a série um sucesso imediato, sem abster-se de colocar o dedo na ferida e entregar um absoluto – e delicioso – caos.  

Ficha Técnica

Ano: 2022 – (em andamento)

Número de Episódios: 10

Nacionalidade: EUA

Gênero: drama, comédia

Showrunner: Christopher Stoller

Elenco: Jeremy Allen White, Ayo Edebiri, Ebon Moss-Bachrach, Lionel Boyce, Liza Cólon-Zayas, Abby Elliot, Matthy Matheson, Oliver Platt, Jamie Lee Curtis

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