Por Luciana Ramos

Histórias misteriosas sempre tiveram apelo, já que se apresentam como grandes quebra-cabeças para serem montados, revisados e solucionados. Na última década, uma nova profusão de narrativas desse tipo ganhou força em diferentes formatos – são livros, filmes e séries que exploram crimes dos mais diferentes ângulos em uma tentativa de entender a excepcionalidade dos casos e, em outra instância, o que cada desfecho nos conta sobre a sociedade em que vivemos.

Diante desse cenário, torna-se cada vez mais difícil explorar o gênero em linhas originais ou, ao menos, que apresentem algum frescor. É exatamente o que a primeira temporada de “Depois da Festa” consegue alcançar, permanecendo ambiciosa nas ideias, sofisticada na execução e despretensiosa na maneira como se propõe a ser consumida.

A trama se desenrola a partir do assassinato do astro pop Xavier (Dave Franco), que cai da varanda da sua casa na festa de comemoração de quinze anos de formatura do ensino médio. No ambiente, ex-colegas com quem possuía relações conflituosas ascendem ao posto de suspeitos, cabendo à detetive Danner (Tiffany Haddish) e seu assistente, Culp (John Early), coletar testemunhos e provas.

A sua curiosidade pela mente humana leva a investigadora a propor que cada um detalhe os acontecimentos da noite como “um filme”. Na sua interpretação, o modo com que os fatos são relatados depõem sobre quem os conta, e a verdade pode emergir entre as lacunas subjetivas de cada um. Em cada episódio, um personagem remonta sua versão dos fatos, apresentada ao público com a roupagem de um gênero cinematográfico específico: Aniq (Sam Richardson) enxerga sua noite como uma comédia romântica, Yasper (Ben Schwartz), um musical, Chelsea (Ilana Glazer), como um suspense, e assim por diante.

O modelo é incrivelmente eficiente por ser bem modelado. O olhar do público é guiado por Danner, que se coloca como espectadora entusiasmada em entender a dinâmica daquele grupo. Suas interrupções por vezes pontuam incoerências ou detalhes que poderiam permanecer imperceptíveis ao espectador. “Depois da Festa” não quer que o público quebre a cabeça para solucionar um caso – que, diga-se de passagem, é muito bem construído – mas estimular o consumo despreocupado. Os episódios são curtos e as referências são bastante claras; por vezes, explicadas. Em um deles, Aniq, em uma tentativa de se inocentar, pede aos colegas que escrevam a palavra diarreia no papel. É o tipo de piada que tira o peso da produção e reforça seu intuito cômico.

É fácil identificar os truques, clichês ou ferramentas narrativas inerentes a cada gênero, mas a mescla entre eles impede a série de se tornar cansativa. Sabiamente, a narrativa se afasta do local do crime por dois episódios, que servem ao mesmo tempo como um respiro necessário e ajudam a embasar a motivação do crime.

O mesmo trabalho ocorre na construção estética, que se atenta para a proposta da série e aposta na repetição de passagens com pequenas alterações, seja na iluminação, capaz de transformar uma comédia em suspense, ou na movimentação de câmera, que alteram um deslocamento comum em uma corrida de carros. O intrigante é exatamente observar como angulações e sombreados interferem no tom de cada cena. A série oferece, portanto, um jogo além do costumeiro “quem matou?”, já que estimula a caça por sutilezas visuais que reforcem os argumentos dos envolvidos nos crimes.

Ao centro da produção, está um elenco afiado, composto de atores mais associados à comédia. Destacam-se entre o bando Ben Schwartz, que constrói uma persona ao mesmo tempo superlativa e profundamente insegura, Tiffany Haddish, que oscila entre empatia e deboche como ninguém, e Sam Richardson, que apresenta um profundo senso de humanidade por baixo da fachada pateta de Aniq.

Criada por Christopher Miller, que dirige todos os episódios da temporada, “Depois da Festa” investe em clichês para compor uma narrativa surpreendentemente original. O seu maior trunfo é saber o que explorar de cada gênero sem expandir demais o conceito, permanecendo fluida e leve. Mesmo assim, oferece algumas reflexões interessantes sobre pré-julgamentos e, em especial, como essas interpretações erradas podem contaminar relações e jornadas.

Ficha Técnica

Ano: 2022 – (em andamento)

Número de Episódios: 8

Nacionalidade: EUA

Gênero: comédia, policial, mistério

Showrunner: Christopher Miller

Elenco: Tiffany Haddish, Sam Richardson, Zoe Chao, Ben Schwartz, Jamie Demetriou, John Early, Ike Barinholtz, Ilana Glazer, Dave Franco

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