Por Luciana Ramos

 

Imagine uma sociedade repressora e patriarcal, onde as liberdades individuais foram completamente suprimidas. Onde a ação negativa do homem na natureza deflagra uma consequência assustadora: a grande maioria das mulheres não consegue mais conceber. Diante disso, o gênero feminino foi dividido entre férteis e inférteis.

 

Com o uso da religião como manobra para derrubar a democracia, institui-se um novo país onde um dia existiu os Estados Unidos: Gilead. Como em todo Estado totalitário, viver significa curvar-se às regras – algo assegurado pela violência. Mulheres aptas a conceber são então sequestradas e transformadas em aias. No seu período fértil, são estupradas pelos donos das casas onde moram, os Comandantes, em um ritual bizarro em que as esposas destes (devidamente inférteis) participam. Ao parirem, tem os filhos tirados de si e são realocadas para outra residência, onde devem repetir o processo.

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A subserviência é a característica mais importante dessa sociedade e, aos poucos, “The Handmaid’s Tale” revela que as leis não se flexibilizam nem mesmo aos que as escreveram. A trama é centrada em June (Elizabeth Moss), uma mulher que foi separada do marido e filha para ser transformada em Offred. A mudança do nome mostra-se um aspecto crucial, pois denota a usurpação da identidade, a objetificação daquelas mulheres: Offred nada mais é do que Of Fred (“de Fred”).

As tentativas de rebelião são suprimidas com extrema violência, culminando em mortes que variam do enforcamento ao apedrejamento. Com isso, o próprio ato de sobreviver torna-se uma rebeldia, como mostra a protagonista através do seu fluxo de consciência. Tendo o destino, a família, o corpo e mesmo o propósito de vida retirados à força, June resiste no único lugar impenetrável do seu ser: a sua mente. Os seus pensamentos narrados em off e contrapostos aos rituais diários que participa expõem não só os horrores como a hipocrisia velada em um manto religioso. O exemplo mais gritante é a existência de um bordel, um lugar onde os desejos dos homens escondem-se do julgamento público e, assim, renegam o papel do sexo como estrito para a reprodução.

 

A complexidade narrativa é exposta através do cotidiano, usando a repetição das atividades para detalhar o funcionamento deste mundo. Em meio à aparente normalidade, surgem cenas que escancaram a crueldade daquela configuração social. Esse mecanismo perdura por toda a primeira temporada, relegando as possibilidades práticas de resistência ao final e, assim, abrindo inúmeras possibilidades para os futuros episódios.

Birth Day

Complementam-se às palavras belíssimas imagens, que denotam a capacidade técnica da produção. Os figurinos chamam atenção pelo minimalismo e o trabalho de cor extensivo à fotografia: o vermelho atua como símbolo das aias, enquanto o verde, predominante não só nas roupas das esposas como na arquitetura, é a representação do Estado. Os enquadramentos sempre trabalham com um jogo de luz e sombras, nunca revelando por completo o que está em cena. Trabalha assim a nível simbólico a opressão e a esperança, a luz do sol que insiste em entrar mesmo nos dias mais escuros.

 

A construção imagética, no entanto, nada seria sem as excelentes atuações, em especial de Samira Wiley e Elizabeth Moss, ambas profissionais na arte da sutileza, de demonstrar ao mesmo tempo força e vulnerabilidade. Com os cabelos presos em toucas ou em um chapéu que cerceia a visão, Moss trabalha seu rosto como instrumento e exprime com o olhar as mudanças de reações (naturais ou manipuladas) às situações que se apresentam.

Baseado na obra-prima de Margaret Atwood, “O Conto das Aias”, a série da Hulu explora, por caminhos incomodamente familiares, a construção de uma sociedade distópica que utiliza o fundamentalismo religioso como instrumento para subjugar mulheres. “The Handmaid’s Tale” trabalha a gama de possibilidades narrativas desse mundo com atenção aos detalhes, mesclando a brutalidade à beleza – esta representada na conexão profunda entre mães e filhas – e deixando, ao longo de seus dez episódios, pequenas fagulhas de resistência.

 

Pôster:

 

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Ficha Técnica

Ano: 2017

Número de episódios: 10

Nacionalidade: EUA

Gênero: ficção científica, drama

Criador: Bruce Miller

Elenco: Elizabeth Moss, Joseph Fiennes, Alexis Bledel, Samira Wiley, Yvonne Strahovski

 

 

Trailer:

 

 

 

Imagens:

Avaliação do Filme

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