Por Luciana Ramos
No início da década de 90, os Estados Unidos presenciavam a ascensão do jornalismo midiático, cimentado na cobertura sensacionalista de crimes chocantes, que colocavam os participantes destas histórias nos holofotes 24 horas por dia. Um desses casos envolveu Lorena Bobbit que, em 1993, cortou o órgão sexual do marido, dirigiu sem rumo e o jogou pela janela.
Atordoada, ela prestou depoimento à polícia e ajudou na coleta da parte decepada, que foi reimplantada por médicos especializados. Em depoimento, John Bobbit apresentou-se como uma vítima que acordou mutilada. A motivação, na sua visão, era a dependência extrema da esposa, que não queria ser abandonada. Lorena, no entanto, contava uma algo bem diferente: ela disse ter sido espancada, abusada verbalmente e estuprada rotineiramente por ele. A submissão a cinco anos ininterruptos de abusos a levou a um estado de transe, do qual saiu quando se deu conta do que tinha feito – o que a levou a se entregar para a polícia.
Obviamente, o ineditismo do caso trouxe o interesse da mídia, motivada a destrinchar o relacionamento dos dois a fundo, contrapondo o romantismo do início ao ato violento que culminou no término do casamento. Eximiam-se, portanto, análises ou mesmo considerações sobre o testemunho da mulher, que detalhava comportamentos nojentos e absurdos. Consequentemente, o transtorno mental que sofria e provocou o crime era motivo de deboche.
John Wayne Bobbit elevou-se ao status de Deus da mídia, sendo aclamado pelo seu nome, derivado de um ator hollywoodiano que incorporava o tipo “machão”, e convidado a diversos programas, onde flertava com mulheres, arrecadava dinheiro para o seu órgão ou fazia strip-teases. Cabe salientar, no entanto, que a exposição excessiva não foi exclusiva da sua parte, já que sua ex-mulher, embora incomodada com a atenção negativa recebida, também sucumbiu aos deslumbres do sensacionalismo, posando para capas de revistas e chegando a contratar um agente para controlar suas aparições.
Vinte e cinco anos depois dos fatos, a minissérie documental dividida em quatro episódios “Lorena” dispõe-se a analisar este circo midiático e as consequências dos eventos na vida dos envolvidos. Para isso, conta com entrevistas dos ex-cônjuges, além de inúmeras testemunhas, que inclui jurados do caso aberto pelo Estado para determinar a culpabilidade de Lorena.
Intercalados aos depoimentos, estão imagens de arquivo que ajudam a dimensionar o caso, contextualização que choca pelo cinismo e escárnio aos quais os eventos que antecederam o crime foram reduzidos. Cabe dizer que o momento histórico relatado marca a descoberta do potencial de crimes como entretenimento barato, algo cimentado no ano seguinte, com o julgamento de O. J. Simpson pela morte da esposa e em voga no país até hoje, visto que os EUA possuem diversos canais a cabo especializados neste tipo de cobertura.
Explorando este tema à exaustão, a minissérie não se esquiva de tocar no assunto principal do caso, a violência doméstica. Há um esforço do diretor Joshua Rofé em contextualizar o machismo estrutural, expor números da problemática nos Estados Unidos e contrapor o clima da época, ansioso em jogar toda a culpa nas vítimas, ao cenário atual, onde há um maior esclarecimento sobre estas questões, apesar da resistência de pequenos grupos organizados. É importante salientar que esta abordagem não visa eximir Lorena da culpa que carrega pelo que cometeu, mas inserir o crime em uma narrativa maior de ciclos abusivos que serviram como gatilho para o ato.
Ao revisitar fatos ilustres sob uma nova ótica, a minissérie mostra-se extremamente significativa e interessante – repulsiva nos detalhes relatados, compassiva no olhar oferecido à vítima-algoz. Tecnicamente, não é tão sofisticada quanto outros produtos do gênero: falta rebuscamento nos enquadramentos, na apresentação dos personagens e até na edição, que peca ao costurar depoimentos atuais com imagens antigas. Porém, a simplicidade visual, ainda que deixe a desejar, não é o suficiente para atrapalhar a imersão, dada a força da história narrada. “Lorena” serve como instrumento de reflexão sobre o tratamento relegado à mulheres vítimas de violência doméstica, abordagem que a torna essencial.
Ficha Técnica
Ano: 2019
Número de Episódios: 4
Nacionalidade: EUA
Gênero: documentário
Criador: Joshua Rofé
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Imagens: