Por Marina Lordelo
‘Ser’ e ‘Estar’ são verbos que podem apresentar uma configuração interpretativa mais complexa do que demandam as suas conjugações. De posse dessa brecha, Marshall Eamons (Russel Crowe) é um pastor estadunidense que envia seu filho Jared (Lucas Hedges) para um centro de conversão sexual, na tentativa de transformar o ser gay em estar gay – um processo “pseudoterapêutico”. Assim é contada a história real do jovem Garrard Conley, autor do livro “Boy Erased: Uma Verdade Anulada”, transposta para a tela com título homônimo, sob o comando do diretor Joel Edgerton.
Este, que já possui uma carreira como ator, resolve enfrentar seu segundo longa-metragem de forma mais centrada e com uma direção mais pronunciada do que sua participação como o “terapeuta” Victor Sykes. Porém, não é na forma que a adaptação se destaca e sim na construção de sua narrativa. A complexidade emocional de Jared percorre uma sistemática interessante, inicia-se a partir de uma performance contida e introspectiva em seus dois atos iniciais para uma abordagem mais segura e verbal no terceiro ato. Hedges constrói-o a partir de ferramentas corporais: sua postura, os limites em que seu corpo se movimenta, a ausência de sorrisos e as poucas palavras para dialogar com os planos abertos e fixos de Edgerton e a luz fria e cor dessaturada do fotógrafo espanhol Eduard Grau.
E nessa forma menos vaidosa, o texto de Conley ganha destaque. A tentativa de apagamento do indivíduo sexual e, portanto, do ser completo, é de um mau-caratismo surpreendente. Skyes não tem formação terapêutica/ psicológica, assim como tantos outros conversores. E ainda que tivesse, conduz o suposto tratamento a partir de uma premissa ideológico-religiosa, pautada nos textos bíblicos que lhe convêm acreditar. Nessa (neo)lógica, um grupo de jovens, majoritariamente homens, são submetidos a esse processo por suas próprias famílias intolerantes e opressoras – como numa sequência em que um colega de Jared, Cameron (Britton Sear), é punido ao recusar-se a proferir textos e termos falsos sobre si para atingir o desejo de seu algoz em acusá-lo de sodomia.
E assim o protagonista se pune, revisitando memórias profundas e caras, tentando encontrar uma origem genealógica familiar, revivendo momentos doces e também traumáticos. Mas essa jornada íntima também lhe é útil para assumir o controle das suas decisões e de suas escolhas. A sua mãe, Nancy Eamons (Nicole Kidman), tem um papel fundamental na condução dessa história – ainda que condescendente às decisões conservadoras do marido pastor, ela acompanha o filho em todas as fases dessa complexa jornada.
Kidman tem um arco sem grandes mudanças, a sua aparência física e displays de comportamento se mantêm contínuos e com alguma razoabilidade. Um dos poucos papéis femininos com fala na obra, centrada na presença homofóbica masculina, Nancy aparece como uma espécie de ajuda/encorajamento/apoio a situação de Jared, que pode ter sido reflexo da expressão da personagem na obra literária em si ou de uma tentativa dos realizadores em minimizar os impactos dessa condescendência (parcialmente explorada); mas também pode ser por conta do centramento do roteiro na figura opressiva masculina do pai, Marshall.
Impossível não comparar então os dois diálogos antagônicos entre pai e filho em situações que se referem a sexualidade destes: Marshall & Jared e Sr. Perlman e Elio (“Me Chame Pelo Seu Nome”, 2017). No primeiro, o filho fala e não há retorno, apenas constrangimento. No segundo, o pai fala e o retorno emocional é imediato – há carinho, compaixão e empatia, assim como deveriam ser todas as igrejas, famílias, amigos e pessoas com o mínimo de respeito pelo que se é, e não pelo que se espera ser.
Ficha Técnica
Ano: 2019
Duração: 115 min
Gênero: Biografia, Drama
Diretor: Joel Edgerton
Elenco: Lucas Hedges, Nicole Kidman, Joel Edgerton, Russell Crowe
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