Por Marina Lordelo
Raw (2016) é o primeiro longa-metragem escrito e dirigido por Julia Ducournau, realizadora francesa criadora do curta-metragem de horror “Junior” (2011), presentes no renomado festival de Cannes. Assumindo seu interesse pelo cinema de gênero, a diretora aposta em narrativas impactantes, extrapolando os desejos humanos além dos limites de tolerância social.
Justine (Garance Marillier) é caloura em uma universidade de veterinária, onde sua irmã Alexia (Ella Rumpf) já é veterana. Tradicionalmente, o primeiro semestre de Justine é acompanhado por inúmeros trotes e constrangimentos, entre eles o consumo de carne crua e contato com sangue animal e ela, que é vegetariana, precisa lidar com mudanças em seus impulsos e desejos, ora sexuais, ora comensais.
Em Raw, a diretora centra a história em uma espécie de canibalismo. O desejo de Justine por carne/sangue é estruturado a partir de alegorias que concernem ao jovem adulto – o distanciamento familiar, as descobertas sexuais, os desafios do convívio social, a relação com as frustrações. Atribuir ao horror a função de estabelecer alegorias sociais não é novidade no cinema: George Romero já fazia isso desde A Noite Dos Mortos Vivos (1968), assim como John Carpenter em Halloween (1978) e tantos outros realizadores, mas esses tantos tem algo em comum: são homens. O que Ducournau, assim como Claire Denis (Desejo e Obsessão, 2001), Gabriela Amaral Almeida (O Animal Cordial, 2017), Juliana Rojas (As Boas Maneiras, 2018) faz é trazer para o campo da representação feminina.
A protagonista é então criada para atender a uma expectativa não sexualizada e subjetiva das transformações da adultez feminina emergente. A realizadora tem então a tarefa de trazer complexidade e humanidade à sua protagonista. E assim, segue no estabelecimento da relação entre ela e sua irmã Alexia, que a inspira e a repele em proporções parecidas; em seu atraente colega de quarto homossexual Adrien (Rabah Nait Oufella), que desperta um desejo do impossível; dos conflitos com o consumo de carne frente ao vegetarianismo familiar; dos desafios no desempenho escolar; além do acesso a álcool e drogas frente ao cumprimento dos compromissos universitários.
Raw marca então a transição escola-universidade, adolescência-adultez que em alguns países costuma ser um passo importante na vida dos jovens de classe média, reconfigurando o vínculo familiar. Lidar com pulsões a partir de desejos canibais que são estritamente realísticos é o que Ducournau faz com grande habilidade ao dispensar o fantástico e abraçar o body horror para levar humanidade até o canibalismo extremo, refletindo no corpo as angústias psicológicas de Justine.
Ducournau cria um caldeirão de emoções ao espectador: um amálgama de repulsa, tensão e erotismo, retirando-os de uma zona de conforto esteticamente aceitável, assumindo uma linguagem mais visceral, humana, perturbadora e crua.
Raw está disponível no Netflix.
Ficha Técnica
Ano: 2016
Duração: 99 min
Gênero: Horror, Drama
Diretor: Julia Ducournau
Elenco: Garance Marillier, Ella Rumpf, Rabah Nait Oufella