Por Luciana Ramos

 

Quem foi criança nos anos 90 e 2000 lembra do profundo impacto da Nickelodeon na programação infantil. A emissora (acessada no Brasil pela TV a cabo) continha uma programação que parecia mais diversa que as demais, com atores genuinamente mirins, além de temas e cenários que refletiam universos que cabiam em suas complexidades. Para o espectador infantil, muitas piadas pareciam sem sentido e, quando revisitadas com olhar maduro, parecem chocantes pelo conteúdo pornográfico – por vezes muito mal disfarçado.

Esse é apenas um lado do panorama de “O Lado Sombrio da TV Infantil”, que explora os bastidores do império da Nickeloden. A série mescla experiências de funcionários a uma série de exposições sobre Dan Schneider, que era cultuado como um Midas do conteúdo adolescente, mas cujo comportamento causou traumas profundos em quem cruzou pelo seu caminho.

Ao longo dos episódios, fica claro que muito de errado que ocorreu na empresa se deu pela leniência dos responsáveis frente aos abusos de Schneider e companhia. Cada reclamação, processo judicial ou escândalo era rapidamente escanteado e, ao calar as vozes dissidentes, promovia-se uma cultura em que tudo era permitido pelo “entretenimento”. Apesar de existirem leis que regulavam a presença de pais e responsáveis nos sets, eram-se dados jeitinhos de afastar os seus olhares de falcão e garras afiadas. Aos questionadores, era oferecido o “olho da rua” – como ocorreu com a editora Karyn Finley Thompson, a roteirista Christy Stratton e o ator mirim Bryan Hearne.

Mesmo com pouca idade, os atores negros conseguiam enxergar que serviam de totens para a emissora, cumprindo uma cota ilusória de representatividade, visto que eram rotineiramente submetidos à pequenas humilhações e, não obstante, lembrados que seus papéis ali eram de suporte às verdadeiras “estrelas”, todas brancas. No caso das mulheres, havia um claro componente discriminatório que derivava da misoginia declarada de Dan Schneider. O modo como ele tratava suas funcionárias era – além de ilegal – absolutamente nojento, mas possíveis oposições eram, como já dito, tratadas com demissões ou simples desconsiderações, do tipo “Dan acha isso engraçado”.

Em meio a um caldeirão de preconceitos, medo e incertezas, foram moldados inúmeros programas de extremo sucesso, como “All That”, que se propunha a ser um Saturday Night Live para crianças, “The Amanda Show”, que lançou Amanda Bynes ao estrelato”, “I Carly”, “Drake & Josh” e “Zoey 101”. A locomotiva de dinheiro suplantava qualquer tipo de escândalo, incluindo alguns bem graves de cunho sexual.

Conforme o documentário relata minunciosamente, a Nickelodeon empregou não um, mas três pedófilos convictos, todos trabalhando ativamente na presença de menores de idades. Não à toa, algumas das estrelas mirins sofreram assédios e estupros, caso de Drake Bell, que detalha sua experiência no terceiro episódio, o mais pesado da série.

O nível de destruição e manipulação que ele sofreu é acachapante, ainda mais quando ele se dá conta do apoio recebido pelo seu abusador por parte da indústria. A presença desse homem, Brian Peck, é por si só bizarra, já que seu personagem, cunhado “Pickle Boy”, consistia em pequenas participações nos programas segurando uma bandeja de picles – e, em muitas oportunidades, com uso de piadas fálicas. Somam-se à essa tosqueira outras gags com adolescentes chupando seus próprios pés (um fetiche de Dan), esguichando gosmas nas caras umas das outras (sempre mulheres) ou trajando roupas provocantes.

É um universo perturbador de se olhar em retrospectiva, realmente desconfortante. Em meio às entrevistas, um ponto tocado nos depoimentos de ex-atores infantis é o peso da profissão. Ser visto e avaliado como produto em tão tenra idade invariavelmente causa uma distorção cognitiva muito difícil de ser superada. Todos os entrevistados, sem exceção, relatam a dor profunda que sentiram ao serem descartados – por reclamarem demais, serem substituídos por versões mais novas ou simplesmente deixarem de ser “fofinhos”. Quando questionados, todos afirmam que essa não é um trabalho que desejam para os próprios filhos.

Essa percepção generalizada ultrapassa os limites dos inúmeros problemas estruturais da Nickelodeon, aproximando-se de uma ponderação mais filosófica sobre a função em si. Em outras palavras: ser um ator mirim é, por si só, prejudicial à formação identitária de uma criança? Haveria uma forma de remediar a questão, de oferecer mais proteção aos menores e lidar com eles de um jeito mais acolhedor e humano? Isso é levantado no quinto e último episódio da série, um especial de entrevistas com os personagens principais que visa fechar pontas soltas.

A pergunta, no entanto, fica pairando no ar, sem resposta, assombrada junto aos demônios carregados por todos aqueles que trabalharam na Nickelodeon de Dan Schneider. Uma coisa é certa: enquanto não houver uma mudança radical na indústria (no sentido do que é tolerado ou não ou quais providências são tomadas diante de casos de abusos) é possível que um cenário tão devastador como o retratado em “O Lado Sombrio da TV Infantil” se repita, infelizmente.

 

Nota: um bom complemento à essa série é o longa documental “Showbizz Kids”, que se propõe a investigar a perniciosidade do trabalho infantil a partir da percepção de atores que sofreram grandes baques em suas carreiras, como Mara Wilson (“Matilda”) e Henry Thomas (“E.T.”).

Ficha Técnica

Ano: 2024

Número de Episódios: 05

Nacionalidade: EUA

Gênero: documentário

Criador: Mary Robertson, Emma Schwartz

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