Por Luciana Ramos
De vez em quando, a realidade interfere no trabalho documental de um cineasta e transforma totalmente o seu tema ou a ótica sobre o assunto escolhido. Muitas vezes, seguir acompanhando o desenrolar dos novos fatos transformam obras regulares em excelentes, como os casos de “Citizenfour” e “A Mentira de Armstrong”.
Talvez o exemplo mais impactante da vida interferindo na arte seja o de “Ícaro”, aclamado no Festival de Sundance e adquirido pela Netflix. Em sua ideia original, ele seria um comentário sobre as falhas dos testes antidoping em uma embalagem apelativa: em uma espécie de “Super Size Me: A Dieta do Palhaço” do esporte, o diretor Bryan Fogel resolveu se submeter a uma alta dosagem de testosterona e outros hormônios e, sob seu efeito, concorrer em um dos eventos mais famosos do ciclismo, o Haute Route.
Sob a tutela de Don Catlin, um dos fundadores de laboratórios especializados no assunto nos Estados Unidos, ele entrou em contato com o russo Grigory Rodchenckov, que, via Skype, instruiu sua rotina de injeções e traçou um plano para que seus exames não fossem pegos pelas agências fiscalizadoras. O filme segue acompanhando a evolução de Fogel enquanto atleta, a melhora da performance e eventual decepção em não conseguir provar a sua argumentação base. Eis que uma inesperada virada acontece, que conduz o filme a achar sua substância: Rodchenkov, diretor da WADA (Associação Antidoping) da Rússia, vê-se no centro de uma investigação internacional que pretende averiguar o acobertamento de atletas “sujos” pelo governo de Vladimir Putin.
Antes uma figura brincalhona e um pouco misteriosa (já que em nenhum momento a sua motivação em se deixar filmar por Fogel fica clara), o russo vê-se acuado, convencido de que há um alvo em suas costas. Seu pedido de ajuda é recebido com bom grado do documentarista, que assume um papel ativo como seu mediador em negociações com autoridades. Evoluindo dramaticamente até um ponto que seria inconcebível no início, “Ícaro” abandona a roupagem despreocupada para deixar-se imergir na paranoia de um homem que se deslumbrou com suas habilidades, aproximou-se demais do Sol e teve suas assas derretidas, passando a temer pela própria vida.
Curiosamente, a virada radical da história mostrou-se essencial para a confirmação da hipótese do diretor, já que lhe permitiu amplo acesso a informações sobre como a Rússia submeteu seus atletas a coquetéis sistemáticos de drogas e, concomitantemente, elaborou um sofisticado plano para enganar as maiores autoridades no assunto.
Acompanhando os pensamentos de Rodchenkov, “Ícaro” mostra-se também um comentário sobre os perigos de se tornar um delator, especialmente em um país de perfil pouco democrático. Associações com a obra de George Orwell, “1984”, e relatos sobre um passado com capítulos obscuros, conflitados a um futuro incerto, fazem a obra adquirir tons de suspense, algo acentuado pela câmera trêmula e nem sempre bem enquadrada que acompanha essas personagens.
Ao final, é praticamente impossível o espectador não se sentir afetado pela trajetória do filme, mais fruto da realidade do que da engenhosidade de Bryan Fogel. Este, por sua vez, soube aproveitar o que tinha nas mãos e explorá-lo ao máximo, sem abandonar a humanidade.
Pôster
Ficha Técnica
Ano: 2017
Duração: 121 min
Gênero: documentário, esporte, thriller
Diretor: Bryan Fogel
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