Ano após ano, a lista de indicados ao Globo de Ouro é confrontada com inúmeras críticas que apontam a dissociação da Hollywood Foreign Press Association (Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood) com a indústria que deveria representar. Comumente, há o questionamento sobre a definição das categorias, já que filmes como “Perdido em Marte” e “Era Uma Vez em…Hollywood” foram considerados comédias, ao passo que produções americanas como “A Despedida” e “Minari” foram desconsideradas para a categoria principal por serem faladas parcialmente em outra língua.
É de senso comum em Hollywood que a definição da origem da obra consiste na combinação de alguns fatores além do idioma, como o contrato de produção/distribuição. Assim, “Parasita” consiste em uma obra coreana/americana – embora falado em coreano – por ter sido coproduzido por uma empresa americana, que comprou os direitos após exibição do filme de Bong Jo-Hoo em festivais. Já os dois casos citados acima, por discursarem sobre vidas americanas, terem sido filmados com equipes do país e distribuídos por empresa local (a independente A24), são obras essencialmente estadunidenses e, portanto, suas classificações como “estrangeiras” por um órgão que seria, em tese, mais preocupado com a representação real de uma indústria diversa, chocou a muitos. A esnobada em “Minari” levou o ator Daniel Dae Kim (da série “Lost”) a declarar que o ocorrido era o equivalente ao ditado racista “volte ao seu país, quando o seu país é, na verdade, a América”.
De fato, um dos pontos principais da crise existencial do Globo de Ouro é sua falta de sensibilidade a questões tratadas por outras premiações, como a representatividade racial. Séries incrivelmente premiadas como “I May Destroy You” e “Watchmen” foram completamente esnobadas pela HFPA, enquanto as indicações de “Emily em Paris” causaram fúria em muitos – e foram potencializadas por denúncia do Los Angeles Times de corrupção. Segundo o jornal, 30 membros da associação foram levados pela Netflix à capital francesa com tudo pago, hospedados em hotéis de primeira (U$ 1.400 por noite), recepcionados no set de filmagem e em evento posterior em um museu privado. O “investimento” (considerado antiético por violar o “fair play”) resultou em duas indicações para a produção – Melhor Série de Comédia e Melhor Atriz (Lily Collins) – e incentivou a imprensa a pesquisar a associação mais a fundo.
Descobriu-se, então, que nenhum dos 87 membros da HFPA era negro – flagrantemente contra a ideia de uma associação que representa a indústria jornalística de todo o mundo. Para piorar, no dia anterior ao Globo de Ouro, a presidente da organização, Meher Tatna, respondeu às cobranças dizendo ser difícil encontrar jornalistas negros e qualificados para o cargo. A comoção foi tanta, com hashtags e críticas explícitas de organizações como o Time’s Up, que ela apareceu junto a dois outros jornalistas na cerimônia para pedir desculpas e divulgar mudanças práticas na estrutura da premiação, com prazo definido para 05 de maio. Na época, o The Hollywood Reporter divulgou que Judy Smith, gerente de crises que inspirou a personagem Olivia Pope em “Scandal”, havia sido contratada para fazer o rebranding da organização.
Porém, em abril, um e-mail do ex-presidente e membro vitalício da HFPA foi vazado pela imprensa. Nele, Phillipe Berk encaminha uma fake news envolvendo o Black Lives Matter, cunhado por ele de “movimento racista de ódio” e diz que o líder do movimento, por ter comprado uma casa em Canyon Drive, daria seguimento a “guerra racial concebida por Charles Manson”. Esta não foi a primeira polêmica envolvendo Berk, que foi acusado de assédio pelo ator Brendan Fraser em 2018. Em meio à comoção do Me Too, este declarou ter sido apalpado indevidamente durante uma cerimônia do Globo de Ouro de 2003.
Diante do constrangimento, a HFPA emitiu uma declaração oficial onde afirmou que “desde a sua criação, tem se dedicado em construir pontes culturais e criar maior entendimento sobre culturas e backgrounds diferentes a partir da apreciação de filmes e séries” e que, por isso, “condenava veementemente” as colocações de Berk. Como resultado, ele foi expulso após servir quarenta e quatro anos como membro.
Antes do prazo delineado para anúncio de mudanças, houve outro mal-estar: após a cerimônia do Oscar, Daniel Kaluuya foi confundido por uma jornalista da HFPA com Leslie Odom Jr. e perguntado sobre sua participação em “Uma Noite em Miami…” – ele havia acabado de ganhar a estatueta de Melhor Ator Coadjuvante por “Judas e o Messias Negro”.
Não obstante, duas semanas antes do prazo de anúncio de uma “transformação radical”, a HFPA resolveu ter uma reunião via Zoom com as entidades que clamavam mudança e ameaçavam boicote à premiação. Representantes de empresas de relações públicas, distribuidoras, produtoras e instituições como o Color of Change, GLAAD e o Time’s Up sentaram-se para conversar com Shaun Harper, contratada pela HFPA como estrategista de diversidade.
A reunião reuniu nomes importantes da indústria, como Shonda Rhimes e Ava Duvernay, mas não deu bons frutos: ambas as mulheres deram declarações à imprensa de desgosto com a superficialidade das propostas apresentadas e reforçaram a ideia do boicote. Segundo o LA Times, a falta de entendimento foi tão latente que Harper abandonou a reunião abruptamente e anunciou sua demissão no mesmo dia.
Os representantes de Hollywood afirmaram que Harper estava mal-informada sobre pontos essenciais e sugeriu uma cota de treze pessoas negras como resolução do problema, o que foi considerado superficial e racista. O grupo havia sugerido uma revisão ampla das normas da premiação, incluindo maior transparência nas condutas, programas de trainee que abracem a representatividade, regras de seleção mais bem embasadas e a obrigatoriedade dos membros em assistirem a todas as obras submetidas para votação.
Este último ponto reflete uma discussão importante: segundo a imprensa americana, muito da miopia dos membros ao que é considerado inovador em Hollywood – como o já citado “I May Destroy You” – deriva da “preguiça” deles em acompanharem novos títulos, privilegiando filmes e séries com artistas conhecidos ou mais velhos em detrimento dos demais. Isso explica, por exemplo, a insistência em premiar “The Kominsky Method”, com Michael Douglas no elenco, enquanto o Emmy e o SAG já faziam acenos à inovadora “Fleabag”.
A falta de sensibilidade racial, atrelada à necessidade de atrair e premiar grandes estrelas em detrimento da avaliação do que foi, de fato, o melhor da produção cinematográfica e televisiva por si só já seria suficiente para desmoronar o Globo de Ouro. Porém, as críticas expandem-se a caminhos mais escusos, apontando para a já citada corrupção e humilhação de inúmeras pessoas ao longo das sete décadas de existência da premiação.
Em meio ao turbilhão de infindáveis crises, o jornalista norueguês August Kjersti Flaa processou a HFPA. Embora seu caso tenha sido arquivado nos EUA, ele serviu para aumentar a pressão sobre a associação. Flaa afirmou que se submeteu sem sucesso ao processo de seleção por inúmeros anos e descobriu, ao longo de sua jornada, uma “cultura de corrupção”. Ele ainda comparou à instituição a uma “espécie de cartel” que controla o acesso à mídia enquanto promove ganhos financeiros para seus membros.
Ademais, um grupo de mais de cem agentes e assessores divulgou uma carta em que prometia cortar acesso aos seus clientes, estrelas de todos os portes, caso a associação não mudasse radicalmente sua conduta “discriminatória, antiética, antiprofissional e endemicamente corrupta”. As acusações são inflamatórias e apoiadas por inúmeras empresas de PR. Cindi Berger, da R&CPMK, afirmou que seus clientes eram preparados antes de encontrar a HFPA, pois com certeza ouviriam algo danoso ou humilhante: “eles tiveram que lidar com racismo, sexismo, homofobia e transfobia. Nós não podemos continuar apenas balançando nossas cabeças em choque”.
Em meio a tanta turbulência, o prazo da divulgada “transformação radical” chegou e a associação anunciou o aumento do número de votantes em 50% em um prazo de dezoito meses, focando na diversidade de novos membros. Sendo assim, o resultado da ação não seria sentido no Globo de Ouro do próximo ano e nem de longe tocava nas demais questões levantadas.
Diante da falta de uma articulação real para mudança, os setores resolveram agir em uníssono. Netflix e Amazon anunciaram que não irão trabalhar com a associação enquanto não houver reforma, o que significa que não submeterão suas obras (que dominam a premiação) para votação. O grupo detentor da HBO e Warner seguiu o exemplo e atores como Mark Ruffalo foram protestar contra a HFPA nas redes sociais. Já Tom Cruise foi além e enviou de volta as suas três estatuetas do Globo de Ouro à associação de imprensa internacional.
Scarlett Johansson criticou veementemente a organização, oferecendo lampejos de tratamento inapropriado:
“Ao participar de uma campanha para premiações, os atores devem sentar-se e engajar em uma série de entrevistar para promover o filme em questão. Por inúmeras vezes, eu fui agredida com perguntas extremamente sexistas de jornalistas da HFPA que tocavam no limite do assédio sexual. A HFPA se legitimou por meio de tipos como Harvey Weinstein e se aproveita do entusiasmo ao redor do Oscar…e a indústria aceitava os abusos até então. A menos que haja uma reforma significativa no Globo de Ouro, eu acho que é hora de nos afastarmos da HFPA para focarmos na força da unidade de nossos sindicatos e da indústria como um todo”.
Diante da intensa comoção, a NBC, que tradicionalmente exibe a premiação, anunciou o cancelamento do show de 2022. A divulgação foi interpretada como uma forma de pressão sobre a associação, ainda resistente em diversos níveis à mudança. Em nota, a empresa disse:
“Nós continuamos a acreditar que a HFPA é comprometida a fazer reformas substanciais. No entanto, mudanças dessa magnitude levam tempo e dedicação e nós acreditamos que a HFPA precisa de espaço para fazê-lo da maneira correta. Por isso, a NCB não vai exibir o Globo de Ouro 2022. Assumindo que a associação cumpra o seu plano, nós estamos esperançosos em voltar a exibir o evento em janeiro de 2023”.
Sem a NBC, a HFPA deve decidir como transmitir seu evento – se ainda restarem estrelas para o tapete vermelho – ou se comprometer, enfim, a mudanças significativas. A crise parece longe de acabar.