Por Luciana Ramos

 

O sucesso estrondoso de “Felicity” depositou uma pressão descomunal em Keri Russell. Por muitas vezes, ela explanou quão sufocada se sentia pelas infinitas discussões sobre o seu cabelo ou o seu talento, sempre em uma ótica de encaixá-la em determinado padrão desejado de mulher. Após o polêmico cancelamento da série, a atriz enxergou no mundo do cinema independente um canal de aperfeiçoamento de uma persona fílmica mais a sua cara, contrapondo um refinado (e levemente autodepreciativo) humor a explorações de personagens mais inconsistentes e incoerentes.

Esse processo desembocou no sucesso da série “The Americans”, onde interpretava uma espiã da KGB que tinha uma vida semifictícia nos Estados Unidos dos anos 80. Dividida entre símbolos sociais construídos – a mãe, a esposa, a amiga – e um senso de dever que atropelava qualquer desejo pessoal, Elizabeth Jennings demonstrava um conflito sem chance de reconciliação, estabelecido a partir de um jogo de atração e repulsa traçado com o espectador.

É exatamente o tipo de complexidade que ela, muito à vontade, traça em “A Diplomata”, nova série da Netflix. Katherine Wyler (Russell) não foi concebida para ser adorada à primeira vista: sua rispidez, objetividade, impaciência e senso higiênico questionável causam estranhamento naqueles que a rodeiam, especialmente por sua posição. Diplomata de carreira, ela foi realocada para o posto da Embaixada dos Estados Unidos em Londres, um cargo mais institucional e em evidência. Avessa a jantares, sessões fotográficas e vestidos longos, Kate é obrigada a se adaptar a um novo modelo de trabalho onde a influência geopolítica parece um jogo de xadrez.

Em primeiro plano, ela deve dissolver o imbróglio diplomático causado pelo ataque a um porta-aviões britânico que vitimou quarenta pessoas. De um lado, há o primeiro-ministro do Reino Unido Nicol Trowbridge (Rory Kinnear), ávido por soluções populistas a problemas complicados. De outro, está o presidente americano William Rayburn (Michael McKean), cuja praticidade é malquista por eleitores, que também o julgam muito velho para o cargo. No meio dessa balança, estão Kate e o Ministro de Relações Exteriores Austin Dennison (David Gyasi), que devem atuar em consenso para assegurar a cooperação dos países.

Dois pontos fundamentais devem ser listados ao se falar de “A Diplomata”. O primeiro é que a série se pauta estritamente no diálogo, o que não significa uma maior lentidão dramática. É a troca de impressões, subtextos e alfinetadas entre os personagens que move a ação em um ritmo frenético. Fazendo jus a um mundo onde informação é uma arma, a produção criada por Deborah Cahn (“The West Wing” e “Homeland”) expõe um panorama fragmentado que necessita do faro e inteligência de cada elemento para se chegar à verdade de fato.

Esse caminho tortuoso é permeado por interesses pessoais nem sempre explicitados, sendo o desconhecimento da protagonista sobre a sua própria jornada o principal indício. Nesse ponto, entra em jogo a segunda maior característica da obra: o jogo de poder entre Kate e seu marido Hal. O casamento destroçado dos dois é posto à prova com o novo posto de trabalho, especialmente pela aparente inabilidade dele em ficar à sombra. Ex-embaixador de renome, Hal usa suas conexões para tramar pelas costas dela – às vezes a favor, outras contra – e impõe, dessa forma, conflitos movidos pela diferença de senso ético dos dois.

Aos trancos e barrancos (incluindo uma cena hilária de engalfinhamento nos arredores de um palácio), eles costuram e descosturam novos acordos sobre a relação, sempre em uma base de desconfiança que tornam a série extremamente interessante, além de refletir a complexidade institucional do tema principal.

A dinâmica funciona muito bem por conta do talento de Russell e Rufus Sewell, que sabem unir com maestria a fisicalidade com um senso refinado de sarcasmo. Entregando versões nem sempre empáticas de seus personagens, eles conseguem inserir o humor tênue como uma constante na produção – reforçado pelo ótimo elenco de apoio e seus diálogos autoconscientes.

Em conjunto, esses elementos constroem um equilíbrio fino dificilmente visto em produções atuais da Netflix. “A Diplomata” é uma ótima surpresa da plataforma, que termina sua primeira temporada no seu ápice dramático e promete mais ação, drama e geopolítica nos futuros episódios (já confirmados).

Ficha Técnica

Ano: 2023 – (em andamento)

Número de Episódios: 09

Nacionalidade: EUA, Inglaterra

Gênero: drama, suspense

Criador: Deborah Cahn

Elenco: Keri Russell, Rufus Sewell, David Gyasi, Ali Ahn, Rory Kinnear, Ato Essandoh, Michael McKean

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