Por Luciana Ramos
A mudança na disponibilização de conteúdo e, consequentemente, sua forma de consumo galgou subgêneros antes confinados ao status de cult a se tornarem verdadeiros fenômenos. O que mais se beneficiou nesta leva foi, indubitavelmente, o documentário sobre crimes não resolvidos. Além de estimularem o que cada um possui de Poirot, estas obras geralmente abrem debates interessantes sobre o papel dos acontecimentos nos familiares dos potenciais criminosos e suas vítimas e, em casos que incidem mais sobre a superficialidade das provas condenatórias, na culpabilidade do condenado.
Os limites éticos de tais produções foram tão testados quanto as interferências causadas nos processos criminais – devido ao clamor popular, alguns casos, como os de Steven Avery (“Making a Murderer”) e Adnan Sayed (podcast “Serial” e posteriormente minissérie “The Case Against Adnan Sayed”, da HBO) foram reabertos. Assim, o fato de um repórter do New York Post usar uma coletiva de imprensa em tempos pandêmicos para perguntar a Donald Trump sobre a possibilidade de ele conceder perdão presidencial a Joe Exotic é, além de curioso e frívolo, um símbolo do momento em que vivemos.
Este, no entanto, vai além dos questionamentos sobre a culpa no cartório do objeto principal de observação em “A Máfia dos Tigres” e conecta-se mais com a obsessão do público sobre este “personagem” – mesmo tratando-se de um documentário, a palavra encaixa-se dada a forma caricata como se apresenta. Se parte deste culto à personalidade se deve à total incapacidade dos espectadores de questionarem o que está sendo apresentado (e, assim, também o que é escondido ou pouco enfatizado) e passivamente aceitar a narrativa mostrada, a outra parte da responsabilidade deve-se ao trabalho dos documentaristas Eric Goode e Rebecca Chaiklin, que reduziram os escopos jornalístico e criminal da obra para focar no seu aspecto sensacionalista, criando uma romantização dos tipos mostrados.
Estes, os amantes de animais exóticos, são divididos entre pessoas em posições de poder (os donos de zoológicos) e seus hábitos cruéis e abusivos e os seus funcionários, descritos pela própria minissérie como uma coleção de figuras sem perspectivas (alguns viciados ou ex-presidiários) que se submetem a todo tipo de maus tratos e humilhação em prol do fascínio que têm pelos felinos.
Este é um ponto decisivo de “A Máfia dos Tigres”, já que define o que todos estes homens e mulheres possuem em comum: segundo um deles, Jeff Lowe, um homem que carregava filhotes em malas para comercializá-los em Las Vegas, trata-se da busca desenfreada pelo poder concretizado pela aproximação, convívio ou domínio de um felino, mesmo que por apenas o instante de uma foto.
Tal comportamento de matriz animalesca corrobora com a forma como Joe Exotic, por exemplo, trata as outras pessoas: como qualquer predador, ele ameaça constantemente, fornece o que tem em mãos para controlar seus namorados (no caso de Travis Maldonado, a metanfetamina em que era viciado) e, quando contrariado, oscila entre o melodrama, uma forma de chamar atenção, e o planejamento da eliminação dos que põem em risco seu reinado. Se ele fosse uma figura contida, ainda que maléfica, talvez não estivesse preso e a minissérie nem existiria, mas a principal característica de Joe é a sua total fascinação por holofotes, o que o motiva a gravar músicas cafonas e videoclipes piores ainda, a tentar participar de um reality show e, não obstante, a gravar vídeos para internet onde aparece atirando em bonecos de espuma com o rosto de papel de Carole Baskin colado.
O ódio indiscriminado é o principal motor do documentário, podendo ser notado em depoimentos variados e atestado pela quebra constante de alianças e consequentes “puxadas de tapetes” que todos eles sofrem. Neste jogo em que cada um se acha o mais esperto, perdem os valores humanos, éticos e morais: o que observamos são comportamentos do pior nível em uma cadeia predatória onde os animais enjaulados são as reais vítimas. Abusados, sedados e muitas vezes mortos, eles apenas implicam a real dimensão de um problema gravíssimo dos Estados Unidos, que se estende desde a construção de zoológicos privados, a comercialização e exploração de filhotes, a compra e criação de animais ferozes dentro de ambientes domésticos até o consequente despejo destes após o período de 12 semanas onde são mansos e facilmente maleáveis – e se lembrarmos que a previsão de vida de cada animal gira em torno de 20 anos, obtém-se uma real dimensão do drama.
Infelizmente, este elemento cruel e asqueroso é somente pincelado ao fundo de uma narrativa mais chamativa e superficial, somente ganhando um tratamento direto nos últimos dez minutos da maratona de sete horas, com direito a uma montagem de felinos correndo em savanas e o discurso engrandecedor de Joshua Dial, algo tão cafona quanto os videoclipes de seu ex-chefe. A personalidade extravagante deste, em contraponto, é explorada ao máximo, submetendo o documentário ao mero registro do que lhe há de fascinante. O fato de os diretores saberem do caráter questionável de Joe Exotic e, mesmo assim, concedê-lo a devida romantização só leva a obra a maiores problematizações éticas, algumas exploradas no divertido episódio adicional onde Joel McHale entrevista alguns participantes da minissérie para questionar suas impressões sobre ela.
É antiga a discussão sobre a justaposição da realidade com a subjetividade do olhar que guia o gênero e isso é, de certa forma, explorado em algumas escolhas de montagem, onde a “cena” começa com a sua elaboração. Ao mostrar as preparações das entrevistas, os diretores também fornecem um pouco mais do caráter narcísico e controlador dos seus personagens. Seria uma abordagem bastante interessante se não fosse contaminada pelo fascínio de Goode pelos seus objetos de pesquisa e os animais que possuem e, mais ao final, a sua ânsia em conduzir a história a cumprir o seu potencial sensacionalista quando, por obra do destino, Joe foge e é então preso por diversos crimes.
Como se não bastasse, são inúmeros os momentos criminosos registrados em câmeras e salvos para a atração da Netflix ao invés do acionamento de autoridades na época dos acontecimentos. Este é um outro campo de discussão que está contido em “A Máfia dos Tigres”, mas é quase impossível olhar além dos felinos e seus criadores exóticos, do mullets e camisas brilhantes de um ao passeio de elefante do outro. Nas mãos de profissionais mais experientes ou sérios, a minissérie poderia alçar outros patamares, mas o sucesso da sua superficialidade, pautado no que há de absurdo em detrimento da ponderação sobre a sua crueza, atesta para o tempo em que vivemos e o tipo de conteúdo desejado.
Ficha Técnica
Ano: 2020
Número de Episódios: 8
Nacionalidade: EUA
Gênero: documentário, crime
Criadores: Eric Goode e Rebecca Chaiklin