Por Luciana Ramos
Em seu aniversario de trinta e seis anos, Nadia (Natasha Lyonne) fez uma descoberta assustadora: ela não conseguia parar de morrer. Seu fim aparecia das mais diversas formas – quedas, atropelamentos, incidentes bizarros – mas todos os términos conduziam-na a um recomeço no mesmo exato ponto da festa dedicada à sua vida. Tentando solucionar o mistério, ela encontrou Alan (Charlie Barnett), um homem introvertido e certinho que padecia do mesmo. Juntos, os aparentes opostos exploraram as questões metafísicas que justificavam suas pulsões de morte.
Parece complicado, mas “Boneca Russa” soube apresentar de maneira didática e autêntica a narrativa da sua primeira temporada, dedicando-se ao exercício de aprofundamento máximo da sua trama – como as matrioskhas que a caracterizam visualmente. Depois do círculo encerrado, parecia um erro levar adiante a construção de mais episódios (plano delineado por causa do sucesso da até então minissérie), mas as showrunners Amy Poehler, Leslye Headland e Natasha Lyonne, que também atua no papel principal, demonstraram imenso cuidado com o arcabouço narrativo na segunda temporada, impondo um novo desafio que ao mesmo tempo dialoga com tudo já construído e explora novos caminhos.
Quatro anos depois dos incidentes da primeira temporada, Nadia tranquilamente pega um metrô em Nova York para ir até sua casa…e acaba parando em 1982. Completamente perturbada, vaga pela cidade recebendo atenção e cuidado até descobrir que habita o corpo da sua mãe, Nora (Chlöe Sevigny), grávida dela mesma. Tomada por um mix de sensações, a protagonista presencia um momento revelador – o roubo das moedas de ouro de sua família, os krugerrands – e decide mudar o seu passado para, assim, redefinir o seu futuro.
Alan a avisa de cara que inúmeros filmes hollywoodianos já ensinaram ser impossível realizar tal tarefa, mas a amiga parece decidida: afinal, ela merecia ter tido uma infância melhor. Ele, por sua vez, é tomado pela curiosidade de saber onde o sobrenatural trem o levaria e embarca em uma aventura similar, porém na pele da sua avó na Berlim Oriental de 1962. Ao contrário de Nadia, ele gosta de sua nova configuração e permanece decidido em apenas viver uma rotina diferente, mas é desafiado por um grupo de amigos para agir pela quebra de barreiras da cidade sitiada, ainda que isso pareça impossível.
Embora sirva para justificar as escolhas que moldaram a personalidade de Alan e exerça um bom contraponto ao caos da NY dos anos 80, esta subtrama é apenas acessória em uma temporada dedicada a explorar a fundo a história da protagonista, especialmente a relação entre origem e legado, memórias e padrões de comportamento. Em cada encarnação no corpo da mãe, a protagonista vai um pouco mais a fundo na saga do tesouro de sua família, tendo revelações bastante profundas no meio-tempo.
Na pele de uma mulher acometida pela esquizofrenia, também adota um comportamento cada vez mais errático, que desencadeia fendas temporais maiores e confundem mais a sua jornada. Ao invés de soluções práticas ou simples, a narrativa aposta em reflexões existenciais e o desenvolvimento de maior empatia de Nadia por aqueles que a cercam, finalmente entendendo a importância de cada um na formação do seu caráter.
A construção de uma história com tantos lugares e épocas diferentes é extremamente complicada, mas “Boneca Russa 2” faz um excelente trabalho em dinamizar as transições. Renegando superlativos estéticos, opta pela caracterização detalhista dos ambientes e aqueles que o habitam (figurinos) para delinear cada ponto no loop temporal, fixando pontos específicos para adequação do olhar do espectador: o celular moderno, as boinas vermelhas dos grupos de proteção civil, panfletos e telefones públicos dos anos 80, a ostentação nazista da Hungria ocupada ou o controle burocrático da Berlim sessentista.
Tudo isso é envolto em um tom metafisico que embala a história e abre espaço para ousadias visuais maiores em determinados momentos, como a adoção de super closes, split screens, referências a Hitchcock e Spike Lee – sem nunca perder de vista a acessibilidade da história, que permanece leve e interessante até a sua conclusão.
Ao investir em uma segunda temporada independente e reflexiva, “Boneca Russa” foge da aparente maldição de mediocridade que aflige minisséries convertidas em formatos extensos (como “Big Little Lies” e “The Flight Attendant”), oferecendo um olhar fresco e intrigante sobre questões comuns a todos.
Ficha Técnica
Ano: (2019 – em andamento)
Número de Episódios: 7
Nacionalidade: EUA
Gênero: comédia, drama, mistério
Criador: Natasha Lyonne, Leslye Headland, Amy Poehler
Elenco: Natasha Lyonne, Charlie Barnett, Greta Lee, Elizabeth Ashley, Chlöe Sevigny, Annie Murphy