Por Luciana Ramos
No quinto episódio, o mais contundente da temporada, um grupo de estudantes negros relaxa e passeia pelo campus, indo no cinema e em algumas festas. Como revelado por meio de debate, o ato de andar livremente e sem medo é, para eles, também um ato político.
Mais tarde, enquanto dança um rap com vocabulário pesado, Reggie (Marque Richardson) pede ao amigo branco que este não reproduza a letra da música, que contém a palavra que começa com N, considerada altamente ofensiva nos Estados Unidos. Este sente-se rapidamente ofendido pela recriminação e recusa a escutar os apelos. Do debate, nasce uma calorosa discussão envolvendo todos os presentes, o que demonstra o simbolismo pejorativo que tal palavra carrega.
O confronto, agora físico, culmina em um clímax angustiante, que escancara o que a série vinha retratando com diversas exemplificações, pontuadas com ironia, até o momento: a crueldade do racismo institucionalizado, ainda tão presente na sociedade americana – e brasileira, diga-se de passagem.
Para a discussão, “Cara Gente Branca” escolheu um lugar dito como iluminado, culto, o que supostamente significaria uma superação de questões tão mesquinhas, mas a Universidade Winchester é um ambiente permissivo e pernicioso onde os alunos negros sofrem de maneiras diversas com a cor de suas peles.
Desde agressões mais óbvias, como uma festa de blackface a insinuações, olhares tortos e rejeições, a série criada por Justin Simien (derivada do seu filme homônimo de 2014) mostra de maneira complexa a experiência dos afro-americanos em uma sociedade majoritariamente branca. No seu tratamento, evitam-se simplificações: o painel montado é vasto e inclui pontos de vistas contrastantes. A cada um destes, no entanto, é oferecido tempo para ser compreendido e, assim, “Cara Gente Branca” ganha profundidade na humanização de seus personagens.
As jornadas de Reggie e Troy (Brandon P Bell), por exemplo, podem ser analisadas lado a lado. O primeiro é a voz da revolução, sempre disposta a discutir, a tentar mudar a percepção daqueles que discriminam. O segundo é a conformidade, o terno bem passado, as promessas ditas ao pé do ouvido. Se um representa o enfrentamento, o outro é a apatia, que absorve aspectos da cultura branca e os reproduz na tentativa de ser aceito mais facilmente. Troy não existiria sem Reggie e percebe aos poucos que a civilidade nem sempre é o instrumento mais adequado para lidar com as questões perturbadoras que o cercam.
Do mesmo dilema sofre Colandrea (Antoinette Robertson), que prefere ser chamada de Coco, pois o apelido camufla a sua origem. Ela aprende quando criança que a boneca feia é a negra; já adulta, em uma festa, se vê preterida pelas amigas brancas. Como reação à solidão extrema, Coco faz de tudo para se sentir aceita e, no caminho, renega sua identidade. Já Lionel (DeRon Horton) não sofre tanto pela sua cor, mas possui dificuldades em se encaixar nos rótulos sexuais determinados pela sociedade, o que aumenta sua introspecção. Ele vê nos acontecimentos ao seu redor uma chance de proferir seus pensamentos sem de fato expor-se tanto.
De todos, Samantha (Logan Browning) parece ser a mais firme, porta-voz das angústias do dormitório Armstrong Parker no seu programa de rádio, que nomeia a série. No entanto, o relacionamento com Gabe (John Patrick Amedori), um rapaz branco, revela questionamentos sobre sua identidade birracial, além de expor as pressões que sofre por ser um modelo.
Assim, é mostrado que cada pessoa passa por uma jornada distinta e a junção das experiências cria uma percepção de mundo plural acerca de um mesmo tema. A discussão culmina no confronto de ideias do último episódio, que elucida bem a heterogeneidade, ao passo que identifica a necessidade de união na luta por uma sociedade mais igualitária.
Diante do tema, espera-se uma obra densa e assertiva. “Cara Gente Branca” preenche esses requisitos, mas os mescla com bom humor, seja por meio de sátiras e comentários da cultura pop (como a reprodução de um programa claramente baseado em “Scandal”) à ironia inteligente das narrações que abrem cada episódio – dubladas por Giancarlo Esposito, o Gus de “Breaking Bad”.
A voz de Samantha White ecoa contundente, por vezes emocionada, em outras irônica pelos altos falantes de Winchester em seu programa, “Cara gente branca”. Relevante por trazer a superfície o que é desconfortável, elucida e critica os mecanismos de funcionamento do racismo daquele local. Com equilíbrio, a série da Netflix aprofunda-se em uma pauta extremamente relevante com humor, sensibilidade artística, ótimas atuações e diálogos afiados. Como destaque, há o já citado episódio V, brilhantemente dirigido por Barry Jenkins, de “Moonlight: Sob a Luz do Luar”.
Poster
Ficha técnica:
Ano: 2017
Número de episódios: 10
Nacionalidade: EUA
Gênero: drama, comédia
Elenco principal: Logan Browning, Brandon P Bell, DeRon Horton, Antoinette Robertson, John Patrick Amedori, Ashley Blaine Featherson, Giancarlo Esposito, Marque Richardson
Criador: Justin Simien
Trailer:
https://youtu.be/ac6X4EYIH9Y
Imagens: