Por Luciana Ramos
A onda de cancelamentos da Netflix, que atinge majoritariamente séries em suas segundas e terceiras temporadas, além de denunciar o fator mercadológico da arte, também indica a necessidade das produções de se renovarem, aprofundando seus temas e personagens conforme os episódios passam, ganhando assim a relevância garantidora da longevidade.
Após dois sólidos anos, “GLOW” fez um movimento ousado e mudou completamente o seu formato: as “garotas lindas da luta-livre” abandonaram a produção televisiva para montarem um espetáculo em Las Vegas. A reconfiguração ampliou as possibilidades narrativas, visto o ineditismo do cenário e suas infinitas situações. A densidade dos novos episódios, contudo, demonstram também um real comprometimento das showrunners Liz Flahive e Carly Mensch em explorarem a vida dessas mulheres, deslocando-as para o centro narrativo, agora dividido mais igualitariamente.
Ao estabelecerem um ponto principal de tensão para cada personagem, os roteiristas exploraram as ideias ao máximo, diluindo estas narrativas ao longo de episódios construídos ao redor dos seus olhares. Assim, há tempo suficiente para os dilemas de Arthie (Sunita Mani), o processo de aceitação da sua homossexualidade e posterior entendimento da bagagem social que se vê obrigada a carregar. Este é um tema de tensão com a namorada Yolanda (Shakira Barrera), muito mais esclarecida no assunto, que atinge o ponto máximo de tensão no baile organizado por Bobby (Kevin Cahoon).
Este, por sinal, é um novo personagem secundário extremamente interessante, muito bem fundamentado em sua curta e rica aparição: trabalhando há anos como performer drag, talvez seja a pessoa mais talentosa do cassino, mas é marginalizado por ser gay – tanto socialmente como artisticamente, sendo relegado a um salão pequeno e pouco frequentado. Sua condição de artista é contestada com sua interação com Bash (Chris Lowell), uma discussão bastante rica sobre aparências, talento e o poder do dinheiro. Não obstante, o belíssimo penúltimo episodio explora a dicotomia entre a comunidade pacífica e vibrante do interior do cassino e a ignorância e brutalidade do preconceito que os ronda.
A questão do talento, no entanto, não é exclusiva da sua trajetória, perpassando por outras jornadas, como a de Sam (Marc Maron) e sua filha Justine (Britt Baron). Neste ponto, o deslocamento de Ruth (Allison Brie) para um papel mais coadjuvante revela a perda de protagonismo na sua própria vida. Como descreve, ela conseguiu sair do seu estado de mediocridade inicial, firmando uma carreira e um namoro que, mesmo com as dificuldades à distância, parece funcionar. Ainda assim, encontra-se estagnada, muito por conta do vazio que sente por não ter plenamente realizado o sonho de ser atriz.
A sua oposição à ascensão de Debbie (Betty Gilpin), que se realizou no papel de produtora, coloca em xeque também a questão da moralidade no entretenimento, já que os conceitos de sucesso e fracasso, medidos por poder e dinheiro, mostram-se à disposição aos que estão dispostos a tudo, despindo-se da preocupação com ética e bem-estar alheio para isso. Por ter negociado a guarda do filho com o pai – e, por isso, perder aspectos importantes da sua infância – Debbie ainda denuncia a complexidade do papel da mulher na sociedade da época, que exigia sua participação ativa no mercado de trabalho e na maternidade. Assim, sua decisão no episódio final, ao mesmo tempo questiona a citada moralidade, também serve como uma espécie de vingança pelo modo com que sua inteligência e preparo foram negligenciados por pelos homens que a rodeia e insistiam em relegá-la a um patamar inferiorizado.
Dentre as transformações, a mais impressionante foi a de Sheila (Gayle Rankin), colocada à início como uma personagem esquisita que se via como uma loba, usando peruca e roupas de pele durante todo o tempo. O bem estabelecido preconceito que sentia somou-se ao desejo de ser atriz, o que deu início a um processo de desconstrução e recriação da sua identidade, culminando em um desabrochar tocante em forma de monólogo.
A sua libertação ainda é inteligentemente contraposta à prisão mental de Jenny (Ellen Wong), incomodada por ater-se a uma interpretação estereotipada da sua etnia, ou aos desafios físicos enfrentados por Tammé (Kia Stevens). Esta subtrama em particular é muito bem articulada através da repetição da rotina, um artifício bem explorado nesta temporada e que consegue, com sucesso, passar ao público a exaustão inerente à apresentação de sete shows extremamente desgastantes por semana.
Oferecendo narrativas individuais bem contextualizadas em um universo de espetáculo, “GLOW” mostrou que pode se manter interessante mesmo abrindo mão de seu fator visualmente mais atraente, as lutas. A concisão destas passagens em pequenos trechos possibilitou um real aprofundamento das suas personagens, demonstrando que a série tem muito material a oferecer. De maneira inteligente, porém, as showrunners terminam a temporada com um cômico e impactante espetáculo natalino, encerrando a jornada das “garotas lindas da luta livre” na terra dos cassinos, abrindo-se, dessa forma, mais uma vez para a renovação em uma próxima temporada.
Ficha Técnica
Ano: 2017 – em andamento
Número de Episódios: 10 (por temporada)
Nacionalidade: EUA
Gênero: comédia, drama
Criadoras: Liz Flahive, Carly Mensch
Elenco: Allison Brie, Betty Gilpin, Britt Baron, Marc Maron, Chris Lowell, Gayle Rankin, Geena Davis
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