Se David Bowie é o camaleão do rock, certamente Jane Fonda é a camaleoa do cinema. A estrela nascida em berço de ouro (seu pai era ninguém menos que um dos maiores astros da antiga Hollywood), Jane soube criar inúmeras personas ao longo da carreira, demonstrando não só uma grande habilidade em se reinventar como também um conhecimento profundo de si, um poder reflexivo comum a poucos.

Nascida em 1937 na cidade de Nova York, ela cresceu quase sem ver o pai. Sob os cuidados da mãe, a socialite Frances Fonda, aprendeu sobre a importância (excessiva) com a beleza e observou o ressentimento que a figura materna tinha por se sentir abandonada, ao que culpava à sua perda de juventude. O suicídio de Frances, ainda na infância de Jane, a traumatizou por toda a vida, o que a levou a reproduzir um comportamento pouco saudável da mãe: a busca por aprovação do pai e, posteriormente, dos homens com quem se relacionava.

Após estudar teatro na faculdade, Jane despontou como modelo e atriz em filmes pequenos e convencionais, geralmente comédias, onde apresentava a beleza como maior trunfo. Cansada do marasmo de uma carreira pouco satisfatória e muito influenciada pelo sucesso comercial e artístico que o irmão Peter Fonda havia conseguido com filmes underground, a jovem atriz resolveu se aventurar na França, conhecida pelo modernismo da Nouvelle Vague. Lá, conheceu o primeiro marido, Roger Vadim, que a transformaria em um símbolo sexual.

Jane Fonda em fotos promocionais de “Barbarella”

Como Fonda descreve muito bem em seus livros e no belo documentário “Jane em Cinco Atos”, Vadim e tantos outros encaravam a revolução sexual dos anos 60 como uma oportunidade de pôr em prática ideias pouco convencionais de relacionamentos, mas sempre em um viés que subjugava a vontade feminina aos seus prazeres. Assim, as companheiras e esposas deveriam estar sempre dispostas a satisfazer suas fantasias.

Foi a contragosto, portanto, que Jane concordou em interpretar a personagem-título de “Barbarella”, que sedimentaria sua imagem de sex symbol. Em outros populares trabalhos, como “Descalço no Parque”, trabalharia a dificuldade de submissão feminina a papeis tradicionais, atrelando um frescor à sua persona cinematográfica que gerações como a de seu pai seriam incapazes.

A percepção de privilégio e desigualdade foi ganhando espaço dentro dela e eclodiu após um incidente durante filmagens no sul estadunidense: ela recebeu flores de um pequeno fã, um menino negro, e abaixou para abraçá-lo; o momento foi fotografado e a KKK pressionou pelo encerramento das gravações na cidade. O racismo gritante em um momento em que os movimentos de direitos civis pareciam avançar levou Jane a perceber quanto caminho ainda restava a se trilhar. Com a compreensão veio o apoio financeiro ao movimento Panteras Negras, o que, por sua vez, a levou a ser seguida e grampeada pelo FBI – agência na época sob os abusos de J. Edgar Hoover, racista notório e que se dava o direito de perseguir quem apoiasse causas progressistas por interpretá-las como “sinais comunistas”.

O engajamento foi ganhando robustez e Fonda, com novo visual e afastada do glamour pela primeira vez, atuou em “Klute: O Passado lhe Condena”, filme de caráter altamente político que a conduziu ao seu primeiro Oscar de Melhor Atriz. Neste ponto da carreira, os trabalhos cinematográficos foram dando espaço à dedicação exclusiva a movimentos sociais, sendo o seu envolvimento mais fervoroso o contra a Guerra do Vietnã.

Sob influência de Tom Hayden (seu então namorado e um dos “Sete de Chicago”), ela viajou ao Vietnã para investigar a ética da conduta americana nos combates, criando um episódio que a marcou profundamente e quase lhe custou sua carreira. Em Hanoi, ela visitou deques que haviam sido implodidos por aviões americanos seguindo a estratégia de matar o povo vietnamita de fome. Sensibilizada após visitar aldeias com plantações secas e crianças chorando, Jane fez um apelo pelo rádio aos soldados, alertando-os do ocorrido (muitos eram de patentes baixas e não sabiam detalhes das ordens) e clamando por condutas mais justas. A gravação foi usada politicamente por ambos os lados da guerra, que viam na destruição da sua imagem o potencial para acirrar os ânimos.

Não obstante, no último dia de viagem, a atriz foi convidada por jornalistas a visitar uma aeronave vietnamita (após ter bebido com eles no almoço), usar um capacete e cantar o hino local…. As imagens foram devidamente veiculadas nos EUA e ela ganhou o pejorativo apelido de “Hanoi Jane”. Seus esforços antiguerra foram deturpados, ela foi chamada de “defensora dos vietnamitas” e tornada persona non grata no próprio país. Suas explanações e admissão de culpa (além da ingenuidade que a conduziu a uma suspensão de descrença momentânea) foram ignoradas.

Foto promocional de “Como Eliminar Seu Chefe”

Frustrada, ela se recolheu da luta pública e continuou a apoiar causas sociais mais discretamente. Nos cinemas, participou de filmes memoráveis, como “Amargo Regresso”, focado em um triângulo amoroso entre um combatente do Vietnã, sua esposa e um ex-soldado paraplégico – que foi bastante ousado para época no detalhamento das cenas de sexo. Ganhou seu segundo Oscar pela tocante atuação. Suas escolhas continuavam a pautar-se pela percepção aguda do seu poder de influência e mesmo comédias como a ótima “Como Eliminar Seu Chefe” carregavam mensagens de importância social.

Foi também no início dos anos 80 que Jane tentou abrir espaço para um aprofundamento da relação com o pai – Henry criticava abertamente o ativismo da filha, clamando que ele feria a sua imagem de bom moço. Embora super premiado, “Um Lago Dourado”, filme que resultou da colaboração em família, não teve o efeito desejado para Jane, que encontrou em Katharine Hepburn o consolo fraterno que precisava.

Concomitantemente a uma prolífica carreira nos cinemas, Fonda reconstruiu radicalmente a sua imagem ao adequá-la aos anseios da década, do cabelão às polainas. Ensinando exercícios funcionais, ela se tornou um ícone dos anos 80 e suas fitas de aeróbica foram as mais vendidas da história.

Em 1990, ao se casar pela terceira vez, resolveu aposentar-se…até o divórcio, em 2005. A partir deste momento, dedicou-se a papeis em comédias e filmes independentes, mostrando uma persona muito mais leve do que seus trabalhos anteriores. Dez ano após o retorno, ao lado da amiga Lily Tomlin (parceira de “Como Eliminar Seu Chefe”), fez mais uma virada radical na carreira, apostando no começo da Netflix com a série cômica “Grace & Frankie”.

Esta, por sinal, serve como grande estudo de caso de sua persona: seja como ativista ou atriz, Jane foi, ao longo das décadas, um ícone imagético, valor profundo que carregou da mãe. A pressão por ser perfeita a levou à bulimia na adolescência – da qual só se curou após os quarenta anos – e a necessidade de aparecer irretocável. Depois de muita reflexão sobre seus comportamentos e escolhas, Jane Fonda fez uma escolha consciente em abraçar uma série sobre os desafios e alegrias da velhice. Já no primeiro episódio, ela desnuda-se em frente a um espelho, tirando maquiagem, apliques de cabelo e roupa. Em outro momento, ela passa toda a duração do episódio tentando levantar-se após cair, já que sua personagem sofre com o joelho fraco.

Ela constantemente desafia as concepções de sua imagem, tendo anunciado em 2019 que não iria mais pintar o cabelo ou comprar roupas novas. A declaração veio com a sua mais nova transformação: Jane Fonda, o ícone ambiental. O seu movimento, Fire Drill Fridays, atraiu inúmeras pessoas para a frente do Capitólio que, em protesto, exigiam leis concretas que avançassem na pauta ambiental. Quase toda sexta-feira, ela era presa – sempre trajando o mesmo casaco vermelho. Na outra semana, invariavelmente, estava lá novamente (com direito a alguns amigos famosos que também eram encarcerados).

Exercendo seu direito de protestar pela sobrevivência de gerações futuras, ela diz não se importar em ser detida, visto que isto é sempre veiculado na imprensa e, assim, concede projeção à causa. É exatamente o tipo de conduta que esperamos de Jane: grande atriz, apaixonada por causas carentes a todos nós, com extremo conhecimento de si, do poder da imagem e o funcionamento da indústria, cuja inquietude e talento provocam admiração há décadas.

Com todos esses atributos é muito fácil compreender a sua escolha para receber o prêmio Cecil B. De Mille (honraria do Globo de Ouro) por sua contribuição à Hollywood.

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