Dona de um carisma cativante, piadas rápidas e um dom para comédia, Marion Davies ficou marcada no cinema como a amante sem talento de um homem muito rico, graças a “Cidadão Kane” (1941), de Orson Welles.

Ao explorar a ascensão e queda de um magnata do jornalismo, Welles propôs-se a debater a discrepância entre conquistas materiais e a plenitude existencial (sendo uma o artifício para compensação da outra) e, para tanto, baseou-se em algumas figuras milionárias da época, sendo William Randolph Hearst o modelo mais evidente. Em comum, havia a profissão, um enorme castelo e o amor de uma mulher muito mais jovem, que amava montar quebra-cabeças – diversão número um de Marion. Dado o poder e influência de Hearst, a retaliação pela projeção era mais do que esperada e, de fato, engavetou o filme por mais de dez anos.

Muito tempo mais tarde, quando os demais participantes desse jogo cinematográfico já haviam falecido, Welles se desculpou publicamente por ter usado Marion como um molde “cruel” de uma personagem mais tola, desprovida de talento e carisma do que a figura real. Suas palavras, no entanto, mostraram-se incapazes de contrastar com a força das construções imagéticas de sua obra-prima.

Nascida no Brooklyn, Davies sabia do potencial de sua beleza e, aos dezessete anos, foi trabalhar como corista de um show, até conseguir uma vaga no prestigioso Zigfield Follies, responsável por catapultar a carreira de muitas moças na época. Dois anos mais tarde, conheceu W.R. Hearst, de 53 anos, que se encantou pela moça e conseguiu persuadi-la a saírem juntos. Só havia um problema: ele era casado e católico, o que o levava a abominar a ideia de um divórcio. Para resolver o dilema, o magnata fez um acordo com a primeira esposa, lhe concedendo uma vida independente e financeiramente segura em Nova York e, em contraponto, levou Marion para Los Angeles, onde passaram a viver abertamente como um casal.

Marion Davies e William Randolph Hearst

A sua ideia era impulsionar a carreira da nova namorada, que sofria discriminação na indústria e nos demais jornais pelo caso, sendo sempre referida como “a amante”. Tal fato levou o magnata a inclinar-se em duas direções, sendo a primeira o uso do seu poder a favor dela em suas publicações e, o segundo, o controle de sua imagem. Ele exigia a confecção de artigos sucessivos sobre a vida de Marion, aproximando-a do público, moldando a sua imagem, desvencilhando-a do “pecado” e, assim, despertando o interesse dos estúdios. Para acelerar o processo, resolveu fundar o Cosmopolitan Pictures em 1918 e fez um generoso acordo com a Goldwyn Pictures que, após fusão, conduziu Hearst e Davies ao primeiro panteão da MGM.

Ela não possuía tantas ambições quanto o namorado. Notívaga, festeira e grande entusiasta do álcool – na época da Proibição – Marion gostava de receber convidados em festas a fantasias (alguns permaneciam por dias) e, acima de tudo, agradar W.R., como chamava. Sempre desconfiada das suas potencialidades, usava o humor para se autodepreciar e, ao fazê-lo, demonstrava grande inteligência, como na entrevista em que comentou seu início de carreira: “Eu não sabia atuar, mas a ideia de participar de filmes mudos foi apelativa para mim pois também não sabia falar”.

A relação entre os dois era extremamente complexa, tendo Hearst atuado como o maior investidor da carreira de Davies, mas também seu maior empecilho. O acordo com a MGM não visava somente controle criativo, mas fazia parte de um plano para garantir a independência financeira da mulher: ela era a presidente da Cosmopolitan Pictures e recebia 30% do faturamento dos seus filmes; ademais, tinha um salário fixo e um bangalô com catorze quartos à sua disposição no estúdio da major. Em uma época de grande concentração de riquezas nas mãos de poucos homens da indústria hollywoodiana, Davies atingiu um patamar apenas sonhado por outras.

Em contraponto, havia o controle obsessivo dele por sua imagem. Nos contratos da atriz eram incluídas cláusulas que permitiam a interferência do seu namorado durante todo o processo – do roteiro à edição e iluminação – de modo que a sua imagem permanecesse “pura”. A intenção era exatamente moldar uma persona cinematográfica de glamour, sofisticação e ingenuidade que ajudassem a dirimir os comentários sobre a excepcionalidade do relacionamento dos dois. Assim, Hearst julgava que Davies deveria aparecer apenas em filmes dramáticos. Ela, por sua vez, se mostrava uma comediante nata e, com muito jeitinho, conseguia o que queria, tendo atuado em inúmeros filmes que exploravam sua personalidade descontraída e engraçada – incluindo um esquema para “prendê-lo” até mais tarde no escritório para que pudesse filmar uma cena com guerra de comidas em “Fazendo Fita” (1928).

As inúmeras reclamações sobre o impulso controlador de Hearst não impediram a sua namorada de uma carreira frutífera, visto que ela era carismática e bem-relacionada, de modo que todos os grandes diretores da época a queriam em suas produções. Davies temia imensamente o cinema falado por sofrer com a gagueira, mas conseguiu fazer uma boa transição, tendo somente findado sua carreira em Hollywood aos 36 anos, quando foi considerada velha para interpretar “Maria Antonieta” e demais ingênuas românticas. Na época, o poderio financeiro de Hearst havia sido dizimado pela Grande Depressão, o que o levou a vender sua produtora, mas Davies assumiu o que pôde das finanças e reorganizou a vida de ambos, inclusive vendendo vários de seus pertences.

Para os que conviveram com o casal, as alegações de uma relação paternal e exclusivamente de interesses eram descartadas, dada a entrega de ambos na relação. Eles permaneceram juntos e fiéis um ao outro até a morte dele, em 1951, mas um acontecimento cinematográfico dez anos antes iria marcar a vida de ambos: o lançamento de “Cidadão Kane”.

Amanda Seyfried como Marion Davies em “Mank”

Apesar das negativas de Welles, eram inegáveis alguns dos paralelos já citados – em especial se considerado que o roteiro foi escrito por Hermann Mankiewicz, amigo do casal. Hearst, movido pela raiva, decidiu atuar para boicotar o filme. Como um processo acarretaria muita cobertura da imprensa, optou por acionar seus contatos para aniquilar a estreia cinematográfica de Welles: proibiu a promoção ou veiculação de qualquer informação sobre a obra em seus jornais, chamou a fofoqueira Louella Parsons, contratada de sua empresa, para difamar publicamente o filme e acionou seus contatos com a MGM e demais estúdios, que pressionaram a Lowell’s, empresa-mãe da RKO, a destruir os negativos e cópias pela soma de U$8.000 dólares. O presidente da empresa, no entanto, negou e lançou “Cidadão Kane” mesmo assim, sendo um fracasso retumbante de bilheteria até o relançamento mais de uma década depois, após a morte do magnata.

Ao contrário do namorado, Marion Davies não se sentia intimidada e falava abertamente sobre o assunto, clamando “não se importar” com sua descrição no filme, visto que nunca ligou muito para si ou para o que os outros pensavam – fala consistente com o tom autodepreciativo que lhe era característico. Ainda assim, o lançamento de “Mank” no final de 2020 abriu um valioso espaço para a revisitação da sua fascinante história, com direito à reparações sobre sua personalidade e talento.

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