Por Luciana Ramos
“Toda dor tem um nome. Qual é o nome da sua?”, pergunta Mr. Pickles (Jim Carrey), em frente às câmeras, cercado de fantoches em um cenário lúdico. Uma espécie de figura mítica no universo de “Kidding”, ele comanda um programa infantil de mensagens edificantes, com personagens que simbolizam pessoas próximas e sentimentos universais, um ambiente que visa divertir e educar.
Nos últimos meses, porém, Jeff não tem sido o mesmo. Desde que seu filho Phill (Cole Allen) morreu em um acidente de carro, ele se sente incapaz de conectar com a abundante positividade que a sua imagem pública representa. Pelo contrário: luta com o pai e produtor do programa, Seb (Frank Langella), pela oportunidade de usar o seu talento comunicador para discutir o luto – uma busca pela cura pessoal, claro, mas também uma iniciativa que vem da percepção de que é preciso falar a verdade para as crianças. Para ele, as palavras bondosas vindas de alguém que elas confiam pode ajudar os pequenos a melhor compreenderem passagens difíceis de suas vidas, suavizando, assim, seus traumas.
A percepção de Seb sobre os acontecimentos não poderia ser mais radicalmente diferente: ele tem absoluta certeza que o filho está à beira de um colapso nervoso, o que representa um risco para a marca que construiu com tanto afinco. Se Jeff é coração, bondade e vulnerabilidade, seu pai representa a racionalidade capitalista: voltado para manutenção a todo custo do apelo comercial do programa de TV e seus inúmeros produtos licenciados, ele entrega-se a confabulações para substituir o “Mr Pickles”, seja por meio de uma patinadora artística, seja pelo desenvolvimento de uma fantasia em tamanho real.
A incumbência de recriar Jeff como fantoche fica por conta de Deirdre (Catherine Keener), irmã dele e responsável por toda a concepção criativa. Ela experimenta culpa em trai-lo, mas se acovarda em enfrentar seu pai, afinal, sua vida pessoal também não anda fácil: sua filha, Maddy (Juliet Morris), viu uma cena traumática e, desde então, ela não sabe como agir. Por ter passado a vida inteira a serviço dos outros, não sabe nem ao mesmo quem é de verdade.
Os dez episódios da primeira temporada desenrolam-se neste eixo familiar, oferecendo maior profundidade às experiências pessoais dos personagens principais através das mensagens declamadas nos programas. Com extrema sensibilidade, oferece um olhar sobre a angústia e insatisfação – suavizadas por pequenos momentos de felicidade – daquelas pessoas que tentam lidar com as agruras da vida. Em especial, trata do poder devastador do luto em suas diferentes apresentações, da perda de significado do protagonista à necessidade de seu filho Will (Cole Allen) tentar assumir a personalidade do irmão morto (uma forma de reafirmar sua presença) e ao impulso de Jill (Judy Greer), que busca superar a culpa jogando-a a princípio no ex-marido, a quem expulsa de casa e logo substitui.
As construções dos personagens são longe de serem esquemáticas; devidamente contextualizadas, revelam a complexidade inerente a cada ser humano. O próprio Jeff, por exemplo, causa estranhamento por sua ingenuidade, que o incapacita de entender os subtextos de frases cínicas e sexuais. É apenas indicado que sua excessiva bondade possa ser fruto da repressão de um grande trauma (algo guardado para próximas temporadas), mas o fato é que sua visão de mundo não só age como guia moral para os demais personagens, como vai além, lembrando o espectador do que há de fundamental na vida: o amor, o respeito e a capacidade de dialogar com o próximo.
Com “Kidding”, o até então desconhecido Dave Holstein consolida-se como uma voz potente e criativa do entretenimento. Em cada um dos episódios que escreve, há uma mensagem avassaladora sobre a condição humana. Em “Kintsugi”, ele disseca o conceito japonês de colar os pedaços quebrados, contado por um candidato a Mr. Pickles japonês que está hospedado na casa de Deirdre. Ele conta os detalhes da história por meio de um belíssimo teatro de sombras até uma interrupção súbita contaminar sua apresentação com uma camada absurdamente hilária de cinismo.
O criador e escritor segue esta chave por todos os episódios, alternando a melancolia à respiros bem-vindos de um humor escrachado, que relembra a faceta humana menos edificante. Essa jogada torna a experiência de assistir à sua série extremamente prazerosa. Seu talento permite construções fantasiosas, como a metáfora da comunicação entre duas pessoas de origens diferentes, e pungentes, como a descrição da vida de Derrell (Alex Raul Barrios), explorada no tocante “L.T. Pickles”.
O excelente roteiro é acompanhado por uma cenografia lúdica que explora as potencialidades do universo infantil, povoado por criaturas únicas, que representam as características fundamentais dos personagens que o inspiraram – como lindamente pontuado por Deirdre.
O pensamento inovador do diretor Michel Gondry (que atua também como produtor executivo) transparece nos episódios que dirige. Dois planos-sequências marcam a narrativa da série. O primeiro mostra Jeff na casa vizinha à que um dia foi sua, observando um novo homem na sua antiga cozinha, conversando com Will e Jill. O movimento contínuo o acompanha subir e descer as escadas, constatando que foi substituído. O segundo acompanha uma mulher drogada, que assiste de relance ao programa do Mr Pickles enquanto se prostitui. As palavras dele tocam fundo na sua alma, provocando uma transformação capturada por uma elipse temporal extremamente bem filmada, que sucintamente transparece o alento e carinho que ele oferece aos seus espectadores e o impacto disso – enquanto ele, pessoalmente, precisa tanto receber o mesmo.
Não obstante às qualidades citadas, a série conta com um elenco que realmente merece todos os adjetivos positivos. Talentosos, os atores concedem complexidade e humanidade aos seus personagens, tornando-os relacionáveis. Destaca-se, obviamente, Jim Carrey, que demonstra seu extremo talento, combinando a comédia física que o tornou conhecido a uma melancolia profunda, típica de seus trabalhos mais dramáticos, como “Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças” (feito em parceria com Gondry).
Aos que acompanham sua carreira, é impossível não traçar um paralelo entre ele e seu personagem. Após consolidar-se como um dos comediantes mais bem pagos de Hollywood, ele retirou-se da vida pública. Ao retornar, em depoimentos como no documentário “Jim & Andy”, declarou não existir mais Jim Carrey, revelando-se bem mais triste do que transparecia.
Na verdade, o que ele discuta em revelações chocantes do tipo era que sua persona exageradamente feliz e brincalhona havia sido uma construção deliberada, que trouxera sucesso, mas não satisfação pessoal. Agora, ele retoma sua atividade enquanto ator na exploração de algo que dialogue mais com sua psique – e nisso, Mr. Pickles não poderia ser mais adequado.
O personagem é o provedor da felicidade de tantos, mas na intimidade luta para entender seus sentimentos, revelando-se triste. Sua jornada na série é, essencialmente, a busca por um “caminho de volta” aos tempos mais serenos e felizes. Poeticamente, “Kidding” explora suas alternativas, deslumbrando os espectadores a cada passo.
Pôster
Ficha Técnica
Ano: 2018
Número de Episódios: 10 (por temporada)
Nacionalidade: EUA
Gênero: drama, comédia
Criador: Dave Holstein
Elenco: Jim Carrey, Frank Langella, Catherine Keener, Judy Greer, Cole Allen, Juliet Morris
Trailer:
Imagens: