Por Luciana Ramos

A potente série da HBO “Lovecraft Country” combina ancestralidade e história americana com a literatura de H.P. Lovecraft, que solidificou a linguagem de ficção por meio de histórias que exploravam o medo ao outro. Infelizmente, este era calcado na sua visão pessoal de cunho extremamente racista, tornando-se uma das figuras que ajudaram a solidificar o preconceito sistêmico no imaginário popular.

Buscando a ressignificação, o escritor Matt Ruffie usou os seus fundamentos literários – as sociedades e livros secretos, a magia e outros elementos – para debater o racismo de uma maneira aprofundada e pungente, mas, ainda assim, calcada no drama familiar. Na adaptação televisiva, feita pela cineasta Misha Green, o molde narrativo é mantido, mas sofre expansões, como inserções específicas de momentos históricos e produções culturais que escancararam ou serviram como reforço do racismo. Como exemplos, estão os episódios que debatem o massacre de Tulsa, a morte de Emmett Till e o uso da figura racista Dopsy (da série de livros “Uncle Tom”) como assombração.

A trama começa na Chicago dos anos 50 com o retorno de Atticus “Tic” Freeman (Jonathan Majors) após servir na Guerra da Coreia. Ao tomar conhecimento do sumiço do seu pai, Montrose (Michael K. Williams), que viajou ao sul dos EUA a fim de investigar a origem familiar da sua esposa (já falecida), o rapaz decide seguir os seus passos. Para tanto, conta com a ajuda do tio George (Courtney B. Vance), especialista em criar guias para viagens seguras aos negros nas estradas americanas (clara alusão ao “green book” que deu origem ao filme homônimo e, na verdade, era um guia de proibições) e da amiga de infância Letitia (Jurnee Smolett), também conhecida como Leti.

Nas estradas ainda regidas pelas leis Jim Crow, eles são confrontados com xingamentos, perseguições e ameaças de violência que são apenas suplantadas pela aparição de monstros com tentáculos gigantes. A descoberta de elementos sobrenaturais abre para um novo mundo para o trio, que o explorará com maior profundidade quando confrontado com o uso de magia. Em Ardham, lugar em que Montrose é mantido em cativeiro, eles descobrem uma sociedade secreta que busca pela imortalidade através de sacrifícios.

Neste núcleo, a figura central será Christina Braithwaithe (Abbey Lee), que deseja derrotar o machismo desta organização ao ser a primeira pessoa a conseguir o feito. Para tal, ela almeja usar o sangue de Tic, o que propõe um insight interessante: ao abertamente desejar a sua morte, mas tentar “justifica-la” como um meio necessário para o seu objetivo, ela escancara um dos modos mais usuais do preconceito sistêmico, o do privilégio branco que não consegue enxergar o negro no mesmo patamar e ignora o seu contínuo derramamento de sangue.

O embate estabelecido entre as duas partes evolui conforme o passar dos episódios: do lado da mulher, há a busca pelos elementos restantes para a alquimia; do lado do núcleo familiar de Tic, há o mergulho no seu passado, que remete até a escrava Hannah (Joaquina Kalukango), um elemento central de resistência na história. Ademais, todos os personagens são confrontados em algum momento com diferentes apresentações do racismo, elevando suas consciências e, ao mesmo tempo, suas capacidades de combate.

Seguindo a tendência de explorar o horror como ferramenta metafórica, “Lovecraft Country” delimita seus episódios ao redor de temas habituais do gênero – cabanas assombradas, fantasmas, monstros, criaturas demoníacas – e explora a fundo cada elemento estético, tornando-se um entretenimento riquíssimo. Por meio das aventuras individuais, exploram-se tanto o poder sufocante da história quanto o necessário (embora doloroso) resgate do passado como importante ferramenta de luta.

Neste sentido, destaca-se o arco narrativo de Montrose, um homem sufocado por diversos tipos de preconceito, enquadrado e violentado, que repete a violência física na criação do filho por ser a única ferramenta que conhece. No reconhecimento de acontecimentos marcantes da sua vida, escancaram-se as feridas que o permitem, enfim, assumir a sua identidade.

De maneira ainda mais expansiva e interessante, Green trata do caráter identitário nas jornadas de Ruby (Wunmi Mosaku) e Hippolyta (Aunjanue Ellis) de maneiras bem distintas: à primeira, é oferecida a possibilidade de experimentar o mundo enquanto mulher branca, o que lhe provoca um choque tremendo e pontua claramente ao espectador as inúmeras agressões que a comunidade negra sofre diariamente; já a segunda, é permitida a exploração das suas raízes e possibilidades infinitas de definição em um lindo episódio que explora a riqueza estética do afrofuturismo.

A partir da junção das experiências e perspectivas dos diferentes personagens, obtém-se um amplo panorama, onde cada elemento é fundamental para a resolução do dilema. Assim, mesmo um episódio aparentemente desgarrado do restante como “Meet me in Daegu” é importante não só como paralelo no debate de destino e missão como também parte da resolução concreta da narrativa.

A estética acompanha o nível de detalhamento da narrativa, compondo belíssimos e grandiosos enquadramentos que exploram as especificidades dos EUA nos anos 50. Ao centro, está o ótimo elenco, que sabe potencializar as jornadas de seus personagens; entre eles, destaca-se Michael K. Williams, que compõe um personagem extremamente complexo com sensibilidade.

Ao todo, “Lovecraft Country” é uma obra de suma relevância, que propõe um intricado debate sobre o racismo sistêmico, infelizmente ainda visivelmente perceptível na sociedade atual. A excelência narrativa encontra em uma estética grandiosa um prato cheio para o espectador, que deve aguardar uma segunda temporada da série, ainda sem formato definido – uma antologia ou a continuação do arco da família Freeman.        

Ficha Técnica

Ano: 2020

Número de Episódios: 10 (por temporada)

Nacionalidade: EUA

Gênero: terror

Criadora: Misha Green

Elenco: Jonathan Majors, Michael K. Williams, Courtney B. Vance, Jurnee Smolett, Aunjanue Ellis, Wunmi Mosaku, Abbey Lee, Jada Harris

Avaliação do Filme

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