Por Marina Lordelo
Quando Paul Schrader criou Travis (Robert De Niro), o protagonista de “Taxi Driver” (1976), talvez não dimensionasse a força que essa persona teria em sua filmografia. Não à toa, em “No Coração da Escuridão” (2018), Ethan Hawke vive Toller, uma espécie de representação “Bergmaniana” de Travis. Toller é um pastor em condição delicada de saúde que vive em uma pequena cidade no norte dos Estados Unidos. No auge de sua depressão é acolhido pela igreja protestante e encontra no sistema supostamente filantrópico de ajuda uma forma de sobreviver.
Essa influência evidente do diretor sueco Ingmar Bergman está, sobretudo, na obra Luz de Inverno (1963), onde o pastor Tomas (Gunnar Bjørnstrand) também carrega consigo sintomas de culpa e de grave depressão. Mas se Schrader se aproxima de Bergman na narrativa, mergulha em outras referências para construir a forma. Opta por uma razão de aspecto de 4:3 que comprime os personagens na tela, ainda que use uma lente grande angular para acentuar as distorções dos rostos em planos mais fechados. Escolhe ambientar os personagens no frio e na neve, dessaturando as cores, investindo em planos simétricos e com poucos objetos de cena, colocando em perspectiva a relação entre a grandiosidade do ambiente e a pequenez de Toller.
Schrader toma a igreja-personagem como uma alegoria da construção religiosa que permeia a trama, capaz de levar o filme a uma transição competente entre o drama e o thriller, e investe em visualidade para transpor as emoções. Quase nada é descritivo e quando é necessário falar, Toller abre significados filosóficos em seu diário, que relaciona sua vida pregressa de perdas, com a de Michael (Philip Ettinger), que deseja desistir de viver. E a causa que este escolhe para se entregar, a destruição do planeta, envolve o protagonista em uma espécie de justificativa para sua própria existência. O pastor-terapeuta cede então ao pedido de Mary (Amanda Seyfried) em acompanhar a condição delicada de seu esposo Michael.
Maria mãe de Deus, rogai por nós pecadores – assim a construção da relação entre Toller e Mary se desenvolve, marcada pela entrega ao sofrimento e a culpa. São as personagens femininas, incluindo Esther (Victoria Hill) e a ex-esposa de Toller (que é apenas citada), que compõem as escolhas do roteiro. Elas conseguem representar cura, penitência e dor, respectivamente. Centrado num casting masculino, as mulheres tem um papel coadjuvante questionável: explicar a natureza complexa do protagonista. Ainda que Mary assuma decisões coerentes, ela nada mais é do que um fator motivador (e desmotivador) para as ações de clérigo e, em alguma medida, isso deve ser questionado pelo espectador.
Arrancar páginas do diário ou investir na companhia do álcool para superar seus fardos vão tornando Toller cada vez mais próximo de Travis. Ao abrir mão de cuidados com a sua saúde e recusar de forma grosseira ajuda de sua ex-companheira, se aproxima de Tomas. Curiosamente os três personagens distintos, em uma simbologia com a cruz, tem a letra T como inicial de seus nomes. †omas, †ravis e †oller se fundem então em uma jornada religiosa de crucificação e se amalgamam em um final angustiante, acolhidos por suas vidas desgraçadas e tomadas pela dor.
Ficha Técnica
Ano: 2018
Duração: 117 min
Gênero: Drama, Thriller
Direção: Paul Schrader
Elenco: Ethan Hawke, Amanda Seyfried, Philip Ettinger, Victoria Hill
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