Por Luciana Ramos
O Tranquillum House é um lugar grande, luxuoso, etéreo e cercado por natureza. No roteiro do seu programa de dez dias, incluem-se meditação e jejum; na sua essência, promete um tratamento holístico pautado na superação de traumas, vícios e crises existenciais sob o comando de uma misteriosa figura que promete ter a chave de uma existência melhor.
Uma imigrante russa que parece ter tido nove vidas anteriores, Masha (Nicole Kidman) caminha pelo centro wellness como se fosse uma extensão da terra em que pisa e tão iluminada quanto o Sol que parece a perseguir. Os cabelos grandes e louros, junto às vestes claras, passam uma aura de tranquilidade absoluta e certeza dos caminhos que seus hóspedes devem seguir para se livrarem de suas angústias.
Porém, conforme explorado nos episódios de “Nove Desconhecidos”, seus métodos são pouco ortodoxos e improvisados. É com uma firme leviandade que ela autoriza o uso de psicotrópicos nas bebidas dos seus nove escolhidos (o centro do seu “tratamento”) em progressões arriscadas e que desembocam em efeitos colaterais perceptíveis. Ao promover um dia de conexão primitiva, vê seu veado de estimação morto e carregado pelos homens do grupo, orgulhosos por reforçarem o estereótipo de caçadores-coletores. Arrasada, Masha disfarça o espanto com a construção de uma narrativa falsa sobre como aquele era o seu objetivo, demonstrando a mistura de apelo psicológico, pseudociência e curandeirismo na sua fala.
Por meio dessas conexões estabelecidas na obra-base, o livro homônimo de Lianne Moriarty, o roteiro de David E. Kelley e John-Henry Butterworth aponta para um tratamento crítico, quase satírico das promessas de cura rápida e indolor tão em voga hoje em dia. Não se trata, no caso de Tranquilum House, apenas de exercícios de reconexão com a natureza, mas algo mais sinistro e perigoso que constrói um modelo de negócios a partir da vulnerabilidade de pessoas extremamente fragilizadas.
Seria interessantíssimo se “Nove Desconhecidos” seguisse aprofundando as contradições de tais “doutrinas”, mas a narrativa logo se perde no emaranhado de personagens, contextualizações e temas. A distribuição de espaço de tela é desigual – com o casal Jessica (Samara Weaving) e Nick (Melvin Gregg) sofrendo um pouco pela superficialidade, enquanto os Marconis (Michael Shannon, Asher Keddie e Grace Van Patten) dominam o arco narrativo – mas o maior problema consiste na irregularidade do tratamento das questões levantadas.
Além do apelo a recursos clichês, como flahsbacks e plot twists, a narrativa sofre com a criação de expectativas que não se pagam. São diversos os elementos potencialmente perigosos apresentados e vitimados por desfechos amigáveis, palatáveis e idílicos. Mesmo submetidos a uma série de terapias sem comprovação, os personagens (com raríssimas exceções) parecem sempre melhorar e, quando apresentam alguma resistência física ou mental no processo, esta é facilmente contornada e o ar de normalidade volta a imperar – raciocínio exacerbado no seu episódio final.
Em meio a tantas irregularidades, corta-se o potencial emocional da produção, restando o carisma e talento dos atores como apelo. O elenco de peso sabe explorar todo o potencial de seus personagens, entregando camadas além do texto; não só melhorando-o, como atenuando a pieguice de alguns diálogos. Enquanto Michael Shannon e Regina Hall impressionam na composição complexa de seus papéis, investindo na alegria esfuziante como máscara da dor, Asher Keddie entrega-se à emoção profunda de uma mãe em luto. Mesclando drama e comédia, Bobby Cannavale e Melissa McCarthy transitam entre farpas e entendimento na jornada mais recompensadora da série; já Samara Weaving surpreende pelo ótimo timing cômico. Ao centro encontra-se Nicole Kidman, que permanece um pouco apagada diante dos demais, incapaz de achar o equilíbrio da performance, como é comum em seus demais trabalhos.
A direção de fotografia de Yves Belanger é igualmente insossa. Ela decepciona por ater-se a pequenos flashes de ousadia (como os enquadramentos alucinógenos) em uma composição predominantemente conservadora e comedida, que parece não saber explorar as belezas do local ou mesmo a capacidade dos seus atores.
Por fim, é impossível não comparar “Nove Desconhecidos” à “The White Lotus”, visto a similaridade de temas e a proximidade dos lançamentos. O que falta na primeira de capacidade em compor um retrato social pertinente sobra à segunda, que também se apresentou como uma reunião de pessoas ricas marcadas por mistérios em um local exótico, mas soube galgar-se a um patamar muito superior, reinventando-se a cada episódio através da sagacidade com que seus personagens interagiam. Assim, tornou-se uma viagem muito mais recompensadora do que a nova série da parceria entre Kidman e Kelley.
Ficha Técnica
Ano: 2021
Número de Episódios: 8
Nacionalidade: EUA
Gênero: drama, mistério, suspense
Criador: John-Henry Butterworth, David E. Kelley
Elenco: Nicole Kidman, Melissa McCarthy, Bobby Cannavale, Regina Hall, Michael Shannon, Grace Van Patten, Samara Weaving, Luke Evans, Asher Keddie, Melvin Gregg, Tiffany Boone, Manny Jacinto, ZoeTerakes