Por Melissa Vassalli

Cinco anos após receber o Prêmio Nobel, Daniel Mantovani (Oscar Martínez), um escritor argentino radicado na Europa, é convidado a retornar a Salas, o vilarejo onde nasceu e de onde saiu quase 40 anos antes, para receber o Prêmio de Cidadão Ilustre. O lugar inspirou a maioria dos livros que deram fama e fortuna a Daniel e, ainda que ele escreva com amargura sobre a cidade, seus conterrâneos esperavam ansiosos por sua volta.

Essa é a parábola do filho pródigo, retratada aqui através dos olhos dos diretores Mariano Cohn e Gastón Duprat. O escritor é recebido com todos os cortejos possíveis, como desfile no carro dos bombeiros, vídeo de retrospectiva, estátua em praça pública e, claro, o título de Cidadão Ilustre. Tudo um pouco brega e exagerado para o homem que deixou a pequena cidade há anos e agora é um cidadão do mundo.

 

 

Percebemos seu esforço para estar presente nestas convenções sociais. Há uma parte sua que gosta do reconhecimento, em conflito com o desprezo que ele sente por Salas e pelos tipos que a habitam. E, assim como na parábola em que o irmão mais velho e disciplinado fica enciumado com toda a atenção dada ao mais novo, logo parte dos moradores perdem o respeito que sentiam pelo autor e mostram que o desprezo é recíproco.

De fato, o comportamento de Daniel não é nada exemplar e o iguala aqueles que ele repudia. Suas convicções morais são fortes, mas o personagem se apega tanto a elas que às vezes parece arrogante e indiferente aos locais. Daí surge uma questão importante, mencionada pelo próprio protagonista: uma obra perde valor quando o caráter de seu criador é duvidoso? Para ele, não. Num outro momento, ao fazer parte do júri de um concurso de pintura, ele reafirma sua opinião de que a obra de arte é independente, ao avaliar como melhor quadro uma tela feita quase por acaso.

 

 

“O Cidadão Ilustre” é um filme esteticamente simples, mas que se torna interessante ao questionar o papel do artista, a função da arte, da cultura e os limites ente ficção e realidade. Ora irônico, ora direto, o longa-metragem tem bons momentos de humor e o destaque fica por conta de Martínez, que acompanha o ritmo do filme, transitando muito bem entre sarcasmo, franqueza e autenticidade.

E, apesar da alusão à parábola bíblica, o filme não é um conto moral. Descobrir que os salenses passaram a repudiá-lo não faz Daniel se tornar mais humilde, mas reafirma sua percepção de que todos na cidade são cínicos. Por duas vezes ele diz: “acho que fiz uma única coisa em toda minha vida. Escapar daquele lugar. Meus personagens nunca puderam sair e eu nunca pude voltar.”. Há uma impossibilidade de fazer as coisas de forma diferente. Daniel não foi a Salas em busca de redenção.

Em “Cinema Paradiso” (Giuseppe Tornatore, 1988), Alfredo diz, na despedida a Totó: “Vá embora. Esta terra é má. Você quando está aqui sente-se no centro do mundo. Parece que nada muda, nunca. (…). É preciso ir embora por muito tempo, por muitos e muitos anos, para encontrar a tua gente, a terra onde nasceu.”. Evocar esta obra pode parecer estranho, pois seu tom sentimental em nada se compara a “O Cidadão Ilustre”, mas a frase de Alfredo serve também para Daniel. Ele precisou retornar a Salas depois de tanto tempo para reencontrar a si mesmo e seguir criando. Se a cidade não fosse hipócrita, Daniel não seria quem é, e essa é a maior das ironias do filme.

 

Pôster

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ficha Técnica

 

Ano: 2016

Duração: 112 min

Gênero: comédia

Diretor: Mariano Cohn, Gastón Duprat

Elenco: Oscar Martínez, Andrea Frigerio, Manuel Vicente

 

Trailer:

 

Imagens:

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