Por Felipe Galeno

A assinatura autoral de Steve McQueen nunca foi um elemento disfarçado em suas obras; ao contrário, se faz presente desde os seus projetos experimentais como estudante de artes até seus longas de grande orçamento. Do drama “12 Anos de Escravidão” ao thriller “As Viúvas”, as preocupações do diretor permanecem bem aparentes, articuladas junto as convenções de gênero ao invés de limitadas por elas. Ainda assim, nenhum de seus projetos parece ser tão pessoal quanto “Small Axe”. Em cada um dos cinco capítulos da antologia há um sentimento de intimidade, como se ouvíssemos o próprio autor se abrir com quem assiste.

Por mais que tenha sido exibido no formato de uma minissérie, “Small Axe” é muito mais uma coletânea de filmes do que de episódios. Como o diretor deixou claro, o projeto nasceu em forma de TV, mas cada história foi se tornando, aos poucos, uma obra cinematográfica própria. O que une cada um desses contos, além do recorte histórico e geográfico (todos se passam entre os anos 60 e 80 no Reino Unido), é um interesse temático comum: lançar um olhar para o lugar que a comunidade de imigrantes e descendentes afrocaribenhos ocupa na sociedade inglesa. É um foco amplo e social que se torna íntimo por conta da experiência do próprio McQueen, que faz parte dessa comunidade e cresceu na mesma época retratada pela produção.

O primeiro capítulo, “Os Nove de Mangrove”, é o mais cinematográfico dos cinco, com mais de duas horas de duração. A premissa, baseada em um caso real, acompanha o julgamento de ativistas que são falsamente acusados de incitação à violência após um protesto pacífico contra o abuso policial na cidade de Notthing Hill. Pode parecer a base de um longa histórico enfadonho, mas o objetivo do diretor é imergir o espectador naquele ambiente para que as vozes dos personagens sejam ouvidas. 

O título do episódio refere-se ao nome de um restaurante, conhecido por ser um ponto de encontro para a população negra e alvo de agressivos ataques das autoridades. A narrativa olha para a questão da comunidade sob um ponto de vista literal, no sentido de um espaço físico. É pelo direito de poder existir dentro das dependências do Mangrove que as figuras em cena lutam, e se esse direito é negado a eles pela sociedade da época, o filme tenta corrigir isso ao dedicar boa parte do tempo de tela a registrá-los habitando nesse cenário de convivência e interação.

Enquanto o primeiro capítulo acompanha a luta constante, o segundo, “Lover’s Rock”, segue personagens que já tem seu lugar garantido. Os seus setenta minutos são utilizados para registrar uma noite de festa nos anos 80. A direção de McQueen abandona a preocupação narrativa para explorar o momento de encontro com toda liberdade e vigor. Sua câmera passeia por entre os cômodos como um convidado, ilumina com cores quase etéreas as danças lentas dos casais e chega a flertar com o experimental na forma frenética como filma as rodas de break dance e freestyle. É uma direção fascinada com os gestos, com a movimentação dos corpos, com a sensorialidade do instante em que essas vidas podem ser, festejar e se expressar. A primeira parte olhava para a experiência negra como resistência, este olha para a mesma como celebração.

A partir daí, “Small Axe” lança-se ao estudo simbólico do papel dos negros nas instituições britânicas. Em “Vermelho, Branco e Azul”, expõe-se o relato biográfico de Leroy Logan (John Boyega), um jovem que larga uma bem-sucedida carreira acadêmica para ingressar nas forças policiais. O interesse de Logan é tentar desfazer a tradição racista que marca a estrutura do policiamento britânico de dentro para fora e seu sonho idealista é tratado pela execução com respeito e empatia, nunca com descrédito.

É a primeira das narrativas a se centrar quase que totalmente no ponto de vista de um só protagonista, o que funciona muito bem graças à robustez do personagem e à dedicação do intérprete. Boyega administra as reações e emoções de sua performance com um controle e maturidade que beneficiam a produção e permitem que o filme caminhe por suas reflexões e questões abertas com fôlego de sobra.

Os dois últimos contos, “Alex Wheatle” e “Educação”, são os mais convencionalmente televisivos da minissérie. Ambos registram mais ou menos sessenta minutos de duração e condensam arcos de desenvolvimento mais previsíveis em um didatismo que lembra os telefilmes. Isso não significa que não tenham valor, pelo contrário: são TV da melhor qualidade. McQueen continua fazendo escolhas formais interessantes (os planos longos, as elipses na montagem) e ainda demonstra uma paixão por essas histórias que redimensionam seu impacto. O último em especial, que retrata a discriminação sofrida por uma criança negra na escola, é tocante mesmo quando é piegas, talvez por ser inspirado por experiências infantis do próprio cineasta. Já “Wheatle” se baseia na conturbada juventude de um escritor britânico para falar sobre identificação comunitária.

No fim, cada uma dos capítulos tem uma identidade bem definida e funcional individualmente. Isso não significa, porém, que a soma das partes os prejudique. “Small Axe” permanece um projeto único mesmo em sua diversidade, uma pentalogia que alcança sua unidade não apenas nos diálogos temáticos entre seus filmes, mas na imersiva empatia que permanece como marca definitiva de seu olhar ao longo de todo o percurso. É, provavelmente, a obra mais ambiciosa da carreira de Steve McQueen, e também uma das que melhor revela quem é o autor, uma vez que concilia todo o seu talento artístico com suas raízes pessoas em prol da criação de algo que pregue sobre uma mensagem social que está totalmente de acordo com o que ele acredita.

Ficha Técnica

Ano: 2020

Número de Episódios: 05

Nacionalidade: Inglaterra

Gênero: drama

Criador: Steve McQueen

Elenco: Naomi Ackie, John Boyega, Jade Anouka, Khali Best, Gary Beadle, Sheyi Cole, Letitia Wright

Avaliação do Filme

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