Por Luciana Ramos
Em uma pequena cidade americana, jovens mulheres desaparecem ou são mortas. O peso da violência é carregado por toda a cidade, potencializado pela estagnação do lugar: são pessoas desiludidas, consumidas pela tristeza, trauma ou envolvimento com drogas.
Em meio à sobriedade melancólica dos arredores congelantes, Mare Shehaan (Kate Winslet), detetive encarregada dos casos, é responsabilizada pelos habitantes do local pela falta de resolução deles. Seu andar vacilante, combinado a expressões frias que denotam sua falta de paciência revelam a estagnação de alguém que, assim como os demais, sente-se imersa pelo luto e é incapaz de seguir em frente. Para piorar, carrega o estigma do brilho de um lance esportivo feito há vinte e cinco anos. O lampejo genial seria ignorado em lugares com mais perspectivas, mas, como ela mesmo nota, em Easttown um ato acima da média representa algo a mais.
A minissérie da HBO desenrola-se em vias complementares: o suspense investigativo, girado em torno da morte da mãe adolescente Erin McMenanim (Cailee Spaney), e um drama social que se desdobra no estudo dos personagens da cidade. O título “Mare of Easttown” explicita a dicotomia da protagonista – enquanto alguém singular daquela comunidade e, ao mesmo tempo, seu produto direto, um fenômeno que pode se repetir em realidades semelhantes de outras partes do país. Aponta-se, com isso, uma América mais sombria, empobrecida e disfuncional que o comumente mostrado em produtos audiovisuais, fruto do frio desprendimento de seu criador, Brad Ingeslby.
Os eventos de Easttown costuram pequenas peças de quebra-cabeça que, mesmo quando aparentemente desprovidas de conexão causal, contribuem para a solução do mistério principal, revelando-se um excelente exercício do gênero policial, com destaque para o eletrizante quinto episódio. Muito mais interessante, no entanto, é a relação travada entre a protagonista e os inúmeros cidadãos que ela investiga, com quem cresceu e flutuam ao seu sabor de acordo com o desenrolar dos casos.
De caráter aparentemente impenetrável, Mare oferece um tratamento endurecido e, por vezes, injusto, aos demais – nem poupando o próprio ex-marido ou outros membros da família – mas, conforme a minissérie preocupa-se em desvendar, trata-se de camadas de traumas soterrados pela inadmissibilidade do seu próprio luto, jornada forçada a encarar a partir de eventos externos. Um aspecto entre os inúmeros interessantes da produção é o reflexo do desleixo com a própria vida na falta de coloração do seu cabelo, detalhe que reforça a qualidade da obra.
Dois personagens atuam como catalisadores do seu processo de transformação. O detetive Colin Zobel (Evan Peters) a surpreende pelo interesse genuíno em ajudá-la (além da devoção a ela), levando Mare a reconfigurar sua perspectiva não só sobre o caso, mas sobre si mesma. Já o escritor Richard (Guy Pearce) oferece lampejos sobre sua sexualidade e sensibilidade, lembrando-a que existe algo além da brutalidade escolhida como camuflagem.
Ao conciliar o avanço da narrativa criminal ao delicado e complexo estudo da personagem principal e suas circunstâncias, “Mare of Easttown” aborda o peso dos acumulados traumas de maneira pungente. Conecta ainda a falta de perspectiva social e a violência como ciclos difíceis a serem quebrados, vide o relacionamento da vítima Erin com os diversos homens em sua vida. Ao final, surpreende mais uma vez ao optar por um caminho de compreensão, abertura e compaixão, oferecendo entendimento e perdão em contraponto à dor.
Não obstante, a minissérie consegue oferecer pequenos vislumbres de comédia na relação entre Mare e sua mãe Helen, servindo para contrabalançar o peso da obra e, no caminho, explorando o timing cômico da sempre excelente Jean Smart. Em uma miríade de ótimas performances destaca-se o trabalho impecável de Kate Winslet, elogiada pela precisão do seu sotaque, um dos inúmeros pontos de um trabalho extremamente detalhista. Este é focado na contraposição do peso corporal de Mare (seu caráter arrastado e sem motivação) a sutileza com que reage aos demais personagens – por vezes captando uma pista ou mentira; em outras, apenas o cinismo. Invariavelmente a contragosto, acaba expondo facetas que não desejava mostrar.
Diante da complexidade com que consegue destilar uma premissa ao seu nível máximo, “Mare of Easttown” revela ser muito mais do que aparenta e firma-se como uma das melhores minisséries do ano. É mais um sucesso da parceria entre a HBO e Winslet, que há dez anos ofereceu um retrato sensível de uma mulher batalhadora em “Mildred Pierce” e agora brilha ao se propor a abarcar mais uma vez as complexidades de uma personagem tão falha quanto interessante.
Ficha Técnica
Ano: 2021
Número de Episódios: 7
Nacionalidade: EUA
Gênero: drama, policial
Criador: Brad Ingelsby
Elenco: Kate Winslet, Julianne Nicholson, Jean Smart, Guy Pearce, Evan Peters, Angourie Rice, John Douglas Thompson, Joe Tippett