Por Luciana Ramos
Diante da inesgotável propensão humana à autodestruição, não é de se estranhar o interesse de Terry Pratchett e Neil Gaiman (entusiasta de mitologias e concepções religiosas) pelo Armagedon. Descrito na Bíblia como a batalha final entre o Reino dos Céus e dos Homens, ele embasa a ideia da extinção da vida que conhecemos como consequência do comportamento vil e irresponsável dos últimos, prova do seu não-merecimento.
Adaptá-lo aos tempos atuais poderia ser uma tarefa ardilosa, mas os autores tiraram de letra, mesclando pequenas ironias, idiossincrasias e muito deboche a temas como conciliação e afetuosidade, formando uma mensagem tão essencial quanto (infelizmente) desprezada. Prova disso foi a polêmica em que “Good Omens” se envolveu ao estrear: grupos conservadores clamaram pelo seu cancelamento – ignorando tanto que se tratava de uma minissérie quanto de que não era uma produção da Netflix, como disseram, mas da Amazon Prime. Esta exaltação ignorante e barulhenta só serviu para reforçar o caráter relevante da obra, cuja fruição seria ainda mais essencial aos que promovem separatismo e ódio sem, ao menos, se proporem a entender o que questionam.
A trama delineia os elementos essenciais do fim dos tempos a partir da ótica do anjo Aziraphale (Michael Sheen) e do demônio Crowley (David Tennant). Opostos desde sempre – tendo um sido o guardião do Éden e o outro a personificação da cobra que oferece a maçã a Eva – eles desenvolveram ao longo do tempo não só uma amizade verdadeira como também profunda afeição pelos homens e seus dilemas. Assim, quando descobrem que o filho do Satã foi enviado a Terra, os dois resolvem se unir para tentar interromper o Armagedon sem que seus superiores saibam.
Uma série de sucessivos (e hilários) erros, porém, os levam a concentrarem suas atenções no jovem Warlock (Samson Marraccino), filho de um diplomata americano. Isto acaba deixando o caminho livre para Adam Young (Sam Taylor Buck) crescer em paz, vivendo normalmente no interior da Inglaterra onde arquiteta aventuras com Pepper (Amma Ris), Wensleydale (Alfie Taylor) e Brian (Ilan Galkof).
No seu aniversário de onze anos, ele vocaliza o desejo de ganhar um cachorro e é presenteado pelo Inferno pelo cão-besta, devidamente disfarçado de filhote. Este evento tão mundano e aparente sem significado para seus amigos inicia a contagem regressiva para o término da humanidade, conduzindo Aziraphale e Crowley a um processo investigativo do paradeiro do Anticristo; não obstante, são obrigados a prestarem contas pela incompetência conjunta.
Já Adam, até então um garoto inocente e travesso, começa a experimentar seus poderes, desencadeando fenômenos perversos ao ler revistas de teorias da conspiração. Estas são entregues por Anathema Device (Adria Arjona), descendente da bruxa Agnes Nutter, cujas profecias “justas e precisas” amarram a narrativa. No seu encalço está o jovem azarado Newton Pulsifer (Jack Whitehall), descendente de Não-Cometerás-Adultério Pulsifer, homem responsável por queimar Nutter na fogueira.
A trama trabalha a oposição entre a progressão dos eventos finais (envolvendo-os em um ar de inevitabilidade) a jornada tortuosa dos personagens que, em comum, desejar deter o Fim. De maneira inteligente, cada um é apresentado com objetivos de caráter individual e específico que, ao se complementarem, alteram o desenrolar dos acontecimentos. Juntos, eles acabam revelando muito sobre a complexidade do espírito humano: Adam, descrito no Céu e no Inferno como a Besta, não passa de um menino comum, com anseios e frustrações, que pode oscilar para o bem ou para o mal de acordo com a sua interpretação dos fatos. Ainda que “gerados” de maneira maniqueísta, assim também são o anjo e o demônio, que se mostram contraditórios, mas, acima de tudo, empáticos um ao outro; o mesmo ocorre com as duplas Anathema X Newton e Shadwell (Michael McKean) X Madame Tracy (Miranda Richardson).
É possível, para Pratchet e Gaiman, abarcar em si conceitos tão distintos como o bem e o mal, nivelados pela convivência pacífica com as diferenças. Como obstáculos, estão a desinformação, a caça às Bruxas (literal e figurativa) e a belicosidade – tão preciosamente trabalhada na ânsia de anjos como Miguel (Doon Mackichan) e Gabriel (Jon Hamm), que deveriam representar a Celestialidade, em lutar a qualquer custo em uma guerra desnecessária e brutal simplesmente para terem o prazer de vencer. A Guerra (Mireille Enos) é também apresentada como uma dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse, somando-se à Fome (Yusuf Gatewood), Morte (Brian Cox) e Poluição (substituta contemporânea da praga;Lourdes Faberes) como grandes mazelas da humanidade.
Esta argumentação racional, fio condutor narrativo, torna-se infinitamente mais atraente por conta do potencial imaginativo de Pratchett e Gaiman, responsáveis pela adaptação do material literário para a televisão. Há ao mesmo tempo a apreciação intelectual pela criatividade dos nomes, das coincidências e de algumas mudanças de expectativas, como o apelo cômico direto, fruto do absurdo, da insensatez e da estupidez que só os homens (e alguns anjos) são capazes.
Cabe ressaltar que o sucesso desta produção é indissociável dos seus atores principais. Na pele de Crowley, David Tennant explora o cool e rock and roll, contrastando o ar descolado ao desespero que o acomete mais frequentemente que gostaria. Seu oposto cômico, Aziraphale, é construído com maestria por Michael Sheen, que o imbui de trejeitos engraçados, pequenos tiques e um temor do castigo que o leva a, invariavelmente, errar – mesmo que seja por boa fé.
Juntos, eles demonstram talento em saber dosar as emoções de seus personagens, tornando-os ricos e interessantes, que conseguem segurar a trama mesmo quando ela oscila em ritmo. Esta, mesmo com algumas poucas falhas, como a falta de aprofundamento dos Cavaleiros do Apocalipse, consegue entregar um produto de entretenimento extremamente engraçado e palatável sem deixar de lado a pungência de uma mensagem que se torna cada vez mais relevante: para evitarmos nossa extinção, mesmo sem a interferência dos polos religiosos distintos, precisamos nos desarmar, nos respeitar e nos unir.
Ficha Técnica
Ano: 2019
Número de Episódios: 6
Nacionalidade: Inglaterra, EUA
Gênero: comédia, fantasia
Criadores: Neil Gaiman, Terry Pratchett
Elenco: Michael Sheen, David Tennant, Frances McDormand, Jon Hamm, Sam Taylor Buck, Adria Arjona, Jack Whitehall, Michael McKean
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Imagens: