Por Luciana Ramos
A caminho do trabalho (palavra que se recusa a falar por crer ser uma maldição), Travis (Alexander Skarsgåard) ouve pela milésima vez a voz de Obie Garbeau II (Ted Levine) lhe dar instruções de como conquistar o mercado e se tornar rico. O primeiro passo, segundo a voz que sai da fita cassete, é largar a garantia de um emprego fixo, visto que este minaria a vontade de empreender. Assim, o rapaz loiro, alto e levemente patético em um fraque alugado que é grande demais para o seu corpo faz da sua demissão um espetáculo – que a grande maioria dos colegas acha risível, mas ele não percebe.
Logo depois, ele se envolve em um acidente para lá de bizarro e deixa a esposa Krystal (Kirsten Dunst) e a filha, Destinee, desamparadas. Muito mais cética do que o marido sobre o sistema FAM, onde suspostamente um americano poderia ficar rico revendendo produtos comuns (de detergentes a papel higiênico) a “linhas descendentes”, ela faz o possível para exigir do dono da organização reparos financeiros por tudo o que Travis investiu mas, além de não conseguir seu objetivo, se vê em uma situação cada vez mais delicada.
A pressão de perder sua casa leva a mulher a jogar as cartas da FAM em benefício próprio: ela, ao mesmo tempo tenta se desfazer do imenso estoque comprado pelo marido para forjar seus números de venda e se aproveitar da popularidade do esquema para atrair clientes para seu outro negócio, o Splashercize, uma combinação de dança e aeróbica aquática que retrata a cafonice típica dos anos 80/90.
A todo momento, a protagonista tem sua autoestima fragmentada por algum comentário alheio: ela é lembrada da sua inadequação, a falta de elegância, a pouca instrução formal. São falas como essa que revelam o classicismo americano, este atrelado à ideia de uma “imagem polida” pelos dirigentes da FAM. Por trás dos panos, porém, está um outro temor muito mais profundo: a noção exata de que Krystal parece farejar à distância a podridão da empresa, em especial o fato de que é praticamente impossível conquistar uma fortuna em um claro esquema de pirâmide.
Assim, a sua esperteza lhe torna perigosa e acentua um jogo de gato e rato entre ela – que é muito boa em convencer todos ao se redor a fazerem o que deseja – e os envolvidos no topo da hierarquia, que dependem do comprometimento dos membros da organização para a manutenção de suas fortunas pessoais.
No meio do jogo, está Cody Bonar (Théodore Pellerin), uma figura patética que usa a herança da família para investir cada vez mais no esquema, ansioso pelo reconhecimento do seu esforço por Obie. O estremecimento da relação com o pai implica a sua fragilidade emocional, sua necessidade de agradar uma figura que lhe dá pouquíssima importância. Seu senso de lealdade, exposto na devoção com que se abaixa quando o gestor milionário passa ou na animação em cumprir qualquer tarefa concede à FAM um embrulho típico de cultos. Em comum, há a falta de contestação (ainda que as pessoas vão à falência por isso), as apostas redobradas, a adoção de simbologias e o sacrifício constante em prol do modelo – aspectos bem fundamentados na jornada do pacato e inocente Ernie (o ótimo Mel Rodriguez), resistente a ideia de início mas que, uma vez comprometido, parece perder a sanidade.
Cody, por sua vez, possui um obstáculo para a devoção absoluta: Krystal. Além dela ser sua nova linha descendente, controlando uma rede distribuição de pessoas em patamar inferior, a mulher também representa o seu ideal amoroso – algo entre a paixonite e a carência. Portanto, cada desafio dela à estrutura representa um imenso dilema para ele.
Em “Como se Tornar uma Divindade na Flórida”, os showrunners Matt Lusky e Robert Funke traçam um ácido (e hilário) panorama do sonho americano, descrevendo-o como uma terra de oportunidades para espertos, sendo o topo reservado a quem souber se aproveitar melhor das pessoas – algo que a protagonista domina muito bem, como fica claro. Neste sentido, o que a retrai do “sucesso” é exatamente o seu senso de moral, que desponta ocasionalmente para alerta-lhe dos prejuízos que sua alçada pode provocar. Ademais, a sua determinação só é recompensada quando consegue provocar algum estrago, um ponto que reafirma a tese dos criadores da série.
Esta se beneficia imensamente do talento de Kirsten Dunst, que também atua como produtora executiva. Apesar de ser mais conhecida por papéis dramáticos, a atriz possui um excelente timing cômico (como já havia demonstrado na segunda temporada de “Fargo”) e sabe não só potencializar os diálogos como inserir pequenas gags visuais de deboche que são absolutamente hilárias. O mesmo trabalho corporal é realizado por Théodore Pellerin, que sabe alçar as falhas do seu personagem a um patamar tão esdrúxulo que se torna engraçado. Outro destaque vai para Beth Ditto, cantora da banda Gossip, que surpreende positivamente ao conceder uma performance aprofundada como a dona de casa Bets.
Balanceando a sordidez do esquema piramidal com um humor ácido e boas doses de bizarrice, a série diverte, engaja e nos faz ansiar por mais episódios. São personagens agradáveis e suas jornadas, embora difíceis, são trabalhadas com equilíbrio suficiente para despertar, ao mesmo tempo, o cinismo julgador de suas escolhas e a nossa torcida por resoluções positivas – ainda que estas não sejam muito prováveis dentro da FAM.
Ficha Técnica
Ano: 2019
Número de Episódios: 10 (por temporada)
Nacionalidade: EUA
Gênero: comédia
Criadores: Robert Funke, Matt Lutsky
Elenco: Kirsten Dunst, Théodore Pellerin, Beth Ditto, Mel Rodriguez, Ted Levine, Melissa de Sousa, Kevin J. O’Connor