A Assistente e a cultura de silêncio no assédio

Por Luciana Ramos

Em 2017, o jornalista Ronan Farrow (filho de Mia Farrow e Woody Allen, com quem não tem relacionamento) compilava inúmeros depoimentos de mulheres assediadas por Harvey Weinstein na tentativa de desmascarar o ambiente de abuso sexual, psicológico e financeiro que se entrincheirou em Hollywood na mesma proporção em que a Weinstein Company se difundia como a mais importante produtora de cinema independente americano.

Um processo igualmente pungente, embora menos detalhado, estava sendo cozinhado pela equipe do “The New York Times”, que avistava na queda de prestígio e poder da empresa uma oportunidade para trazer à tona décadas de burburinhos sobre má conduta. O impulso final para convencer os editores do valor da matéria (diante da inevitabilidade de processos) veio de um lugar inusitado: em 15 de outubro do mesmo ano, a atriz Alyssa Milano (que atuou na série “Charmed”) relatou um caso de assédio sofrido quando mais nova e perguntou, através da #metoo, quem mais teria algo para contar.

A enxurrada de tweets tornou muito clara a percepção de que, mais do que histórias isoladas, os relatos contextualizavam a normalização de práticas criminosas em ambiente de trabalho, uma cultura tóxica que envolve não só a imposição de poder como ferramenta de sujeição aos desejos sexuais do outro como a adequação dos demais envolvidos, que são convidados a “olhar para o outro lado”.

É exatamente o jogo entre complacência e abuso o centro do excelente “A Assistente”. Primeira obra derivada diretamente do caso Weinstein, o filme de Kitty Green é descrito pela diretora como “uma não-ficção roteirizada” e fez inúmero sucesso no escopo de festivais, ganhando inclusive momentum para Julia Garner, cotada na época para as grandes premiações. No entanto, elogios não fizeram o filme ser comprado para distribuição, permanecendo no limbo por mais de um ano até ser comercialmente lançado.

Esse fato mostra-se interessante pois revela a dificuldade que a indústria cinematográfica tem em assumir abertamente o seu peso na perpetuação de carreiras baseadas em abusos de toda ordem (vide os inúmeros casos que cobrimos no MQC) e, portanto, no sofrimento duradouro das vítimas. Em contraponto, em uma estratégia também calculada, plataformas de streaming como a Amazon Prime (que comprou “A Assistente”) e Apple+ (que investiu em “The Morning Show”) despontam como opções de lugares para discussão do tema.

Fato é que a aquisição do filme de Green foi uma jogada excelente, vide a sua potência. Esta advém da abstenção de qualquer apelo dramático ou uma cobertura detalhadamente jornalística (armadilhas comuns a filmes do tipo), sendo o objetivo a criação de um espaço de reflexão sobre todos os elementos inerentes ao crime, focando para tanto na experiência de uma assistente júnior que é testemunha dos acontecimentos e, ao contrário dos seus pares, não tem qualquer poder para reivindicar por justiça.

Primeira a chegar e última a sair, Jane (Julia Garner) é uma jovem com ótima formação que se contenta a fazer cafés, organizar agendas e limpar a sujeira alheia na esperança de posteriormente despontar como produtora. Tratada com desprezo ou escárnio pelos demais, ela representa o fundo da cadeia hierárquica, o que a faz circular pelos corredores quase sem ser percebida testemunhando piadas, comentários e cenas que a levam a refletir sobre a moral do seu chefe.

A não representação física deste personagem, caracterizado apenas pelos gritos e murmúrios, não impede a criação de uma aura de terror que se alastra pela empresa. O medo geral em desagradá-lo soma-se à sujeição de todos os funcionários a imposições pouco racionais, demandas que ultrapassam os limites éticos do trabalho (como o fato da assistente ter que jogar no lixo seringas usadas) e manipulações que sujeitam cada um a acomodar-se um pouco mais – como o fato de Jane ser criticada e forçada a escrever e-mails de desculpas e, posteriormente, elogiada.

Pelos olhos da mulher observamos a dinâmica da empresa, descrita em uma série de micro agressões que reiteram a sua irrelevância como mente criativa. Seu colega de sala (Noah Robbins), por exemplo, teoricamente estaria no mesmo patamar que o seu, mas se sente à vontade para “jogá-la aos leões” (atender as chamadas e decorrentes desaforos da irada esposa) ou chamá-la por bolinhas de papel pois ele, como todos ali, aprendeu que o caminho para subir a escada profissional é pisar no outro.

A tensão é introjetada pela protagonista, que opta por respostas curtas ou meros acenos de cabeça como forma de sofrer menos. Na sua longa jornada, ela colhe pistas da conduta criminosa do seu chefe: são brincos, piadas, as tais seringas, medicamentos de disfunção erétil. Quando uma menina muito jovem (Kristine Froseth) chega sem experiência para trabalhar no mesmo cargo que ela, mas é rapidamente instalada em um hotel, Jane decide agir. É nesse momento que a questão da cultura do silêncio escancara-se na figura de um diretor de RH (Matthew McFayden) muito mais preocupado em saber o que ela tem de provas do que em ajudá-la.

Na época da explosão do #metoo, conforme o detalhamento dos casos de assédio hollywoodianos eram destrinchados, comprovava-se a participação de outros atores em cada crime, mesmo que indiretamente. No caso Weinstein (que Green usou como base para construção do argumento), os abusos e tentativas de estupro eram facilitados por seus funcionários, que recebiam as atrizes nos restaurantes de hotéis e arranjavam uma desculpa para encaminhá-las ao quarto dele. Ademais, elas eram traídas por seus próprios agentes, que as obrigavam a cumprirem o mandado (às vezes por meio de ameaças) e, assim, expandiam seus escopos de influência a cada transação com o magnata.

Por isso, a discussão de crimes sexuais em ambiente de trabalho não deve ser dissociada do debate sobre a efetividade dos programas de compliance e, em patamar inferior, o papel dos indivíduos que atuam como facilitadores. Ademais, há o caso-chave do filme de Green: a figura da assistente que se vê impotente tanto pela ausência de poder quanto pela incapacidade de comprovar os seus pressentimentos.

Focando na sensação, respaldada pelas pequenas pistas ao longo do caminho, o filme renova o gênero de terror ao criar uma narrativa em que o monstro nunca aparece, mas cuja força predadora se impõe sobre todos os que o rodeiam. Seus grunhidos e gritos são sentidos pela protagonista, levando-a a acuar cada vez mais. A cada telefonema, um pulo; a cada relato, um fungar de nariz que indica a supressão do choro. É um peso absurdo a ser carregado e, mesmo assim, à primeira vista, “A Assistente” é um filme que aparenta ser sobre a banalidade – dos copos de café ao tédio dos e-mails.

O brilhante trabalho da diretora é acentuado pela sua escolha de enquadramentos estáticos e duros, que retem as possibilidades de movimentação da personagem. Esta, por sua vez, mesmo trajando rosa em um ambiente cercado por cinzas e marrons, possui roupas e feição tão pálidas que se mistura facilmente ao ambiente, passando quase desapercebida, fruto do excelente trabalho de Julia Garner.

Com poucas palavras, a atriz trabalha o peso corporal de sua personagem como elemento fundamental da narrativa. Seus olhos cansados abrem-se rapidamente como uma presa atenta a cada possível repreensão ou problema. Mesclando entre a desconfiança e ao abatimento, ela expande as camadas de sua personagem em um belo trabalho carregado de nuances.

Inundado pela sutileza brutal, o trabalho roteirizado de não-ficção de Kitty Green explora como Hollywood – e outras instâncias de trabalho – foram capazes de perpetuar monstros focando, para isso, no testemunho de uma vítima indireta, visto que Jane também será obrigada a caregar para sempre o peso do trauma.  

 

*Em 2020, foi fundado o #metoobrasil, que fornece orientação jurídica e psicológica a vítimas de abuso. Para saber mais sobre o serviço, basta acessar o site do movimento.

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