Por Luciana Ramos
Todo ano, ao começar a temporada de premiações, o debate em torno da representatividade retoma à superfície. Nunca adormecido (apenas ignorado pela massa midiática quando não acompanhado de uma narrativa interessante, tipo o #Oscarssowhite), ele embasa o desejo das diversas minorias de não só obterem oportunidades de emprego na indústria do entretenimento quanto de poderem construir narrativas edificantes que retratem suas culturas e elevem suas representações sociais.
Neste sentido, um dos maiores clamores da NAACP (instituição fundamental na luta dos afroamericanos) é referente ao tipo de produção audiovisual, ou, melhor dizendo, quantos produtos desviam de estereótipos e, dentro deste número, quantos se dispõem a apresentar a vida dos negros de maneira positiva – sem recorrer ao sofrimento da escravidão ou a marginalização social. Isso NÃO significa, e é importante reiterar, que obras que contextualizem historicamente a luta do povo afrodescendente são, de alguma forma, menos necessárias: não é este o debate. Ele gira em torno da construção narrativa EXCLUSIVAMENTE por esta luz o que, invariavelmente, coloca-a no campo, também, da representação estereotipada – potencializada pelo comum casamento deste tipo de filme/série com diretores ou produtores brancos, que têm a palavra final sobre o produto.
*para maior aprofundamento, disponibilizaremos abaixo artigos sobre a controvérsia da indicação de Cynthia Erivo ao Oscar deste ano por interpretar a escrava libertária Harriet Tubman*
Octavia Spencer tem usado seu talento e influência em Hollywood para mudar o modo como as coisas são feitas. Além de constantemente debater o tema em entrevistas – e, assim, justificar suas escolhas profissionais – ela busca, por meio da produtora que fundou, atuar na criação de histórias que representem o povo negro em toda a sua pluralidade e relevância.
Seu mais novo projeto, a minissérie da Netflix “A Vida e História de Madame C. J. Walker”, reflete exatamente este desejo, explorando as diferentes facetas da primeira milionária negra americana, uma lavadeira que alçou o sucesso após perder – e recuperar – seus cabelos.
Como ela narra ao começo do primeiro episódio, os cabelos são mais que um complemento corporal ou um instrumento decorativo: suas texturas, comprimentos, formatos e cortes representam a história de um povo, um ponto de semelhança entre pessoas da mesma etnia e, em caráter individual, sua herança genética. Atuam também como ponto fundamental da autoestima, sendo o modo como cada um escolhe cultivá-los (ou não) uma forma importante de se posicionar socialmente.
Por isso, Sarah (Octavia Spencer) sentiu-se humilhada ao perder suas madeixas, sentimento potencializado pelos ataques violentos do marido bêbado. Um dia, uma bela mulher com vasta cabeleira bate à sua porta prometendo-lhe a solução mágica na forma de creme. O produto funciona e Sarah recupera-se emocionalmente a ponto de retomar o trabalho como lavadeira e encontrar um novo marido, o senhor C. J. Walker (Blair Underwood). Ela, no entanto, deseja mais, já que crê com firmeza que a sua jornada é o gatilho perfeito para a venda dos produtos de Addie Munroe (Carmen Ejogo). Chocada pela oferta, esta rechaça a “amiga”, dando início a uma competição comercial que dura décadas.
Sarah, ou a Madame C. J. Walker, como se apresenta, sai na frente por revelar dois traços de personalidade indispensáveis aos empreendedores: a persistência e a ambição. São muitos os percalços pela frente, mas a protagonista não se deixa abater, visto que o seu desejo de sucesso é embasado na visão que possui sobre a exaltação da beleza negra – diferente de Addie, ela não busca aproximar seu produto da promessa de encaixe nos padrões opressores brancos, mas sim a celebração da diversidade dos cabelos negros e, por meio do cuidado com eles, da cultura do seu povo.
No começo do século XX, a sua ambição encontrava obstáculos aparentemente intransponíveis por se embasarem em preconceitos – sociais, de gênero, de raça – muito mal disfarçados. A verdade é que, em 1910, não eram muitas as pessoas dispostas a aplaudirem o sucesso de uma mulher negra (infelizmente, ainda hoje, este tipo de mau caratismo continua a encontrar acolhimento em alguns nichos). Assim, o seu diferencial, conforme elencado na minissérie, não advém das suas privações, mas da absoluta indisposição em aquiescer aos anseios alheios (inclusive aos do seu marido, o que provoca rusgas).
Obviamente, um aprofundamento narrativo maior exploraria os mecanismos de desigualdade que fazem desta história verídica uma exceção no campo social, mas esta não é a função de “A Vida e História de Madame C. J. Walker”. A produção se opõe às narrativas sofridas citadas ao começo, construindo, ao longo de seus quatro episódios, uma trama leve, celebratória e edificante. Exatamente por isso, justifica-se a atenuação das discussões raciais, sempre cercadas pelas tramoias familiares ou da inimiga Addie Munroe que consolidam o tom folhetinesco da produção.
Ainda assim, a obra não se esquiva de abordar o discurso de ódio (e agressões físicas) relegadas ao povo afroamericano, um lembrete histórico perturbador que potencializa a jornada pessoal de Sarah. Como ela mesmo pontua, o seu sucesso é a representação de luta dos seus pais e a transgressão das suas limitações sociais, a mensagem de que as inúmeras adversidades podem sim ser superadas (com muito mais esforço do que uma pessoa branca teria que fazer, como ela mesmo diz) e transformadas em um legado inspirador.
Artigos complementares sobre o problema de representatividade no Oscar:
https://www.bet.com/celebrities/news/2020/01/13/oscar-nominations-one-black-actor-nominated.html
Ficha Técnica
Ano: 2019
Número de Episódios: 04
Nacionalidade: EUA
Gênero: drama
Criadores: Octavia Spencer, Blair Underwood, Bill Bellamy, A’Lelia Bundles
Elenco: Octavia Spencer, Tiffany Hadish, Carmen Ejogo, Blair Underwood, Garret Morris, Kevin Carroll