Por Felipe Galeno

Ao ouvir a premissa de “As Mortes de Dick Johnson”, a ideia que fica não é necessariamente a de um filme afetuoso ou divertido. Um documentário em que a diretora se propõe a filmar seu pai, um idoso com problemas mentais, encenando diversos acidentes fatais pode parecer, a princípio, algo desconfortável e até um pouco macabro de se assistir. Mas não demora muito tempo de duração para que fique claro que o resultado passa bem longe dessa expectativa soturna. Pelo contrário; o longa disponibilizado pela Netflix se revela uma das mais encantadoras e criativas experiências cinematográficas de 2020.

O documentário é dirigido pela experiente diretora de fotografia Kirsten Johnson, que se provou, também, uma talentosa cineasta em 2016, com o filme “Cameraperson”, um belíssimo mosaico autobiográfico montado com trechos de diversas filmagens feitas por Kirsten ao longo dos anos. Aqui, em seu mais novo longa, a diretora dá continuidade a esse projeto de biografia pessoal ao apontar as lentes de sua câmera para seu próprio pai, C. Richard Johnson. Um simpático psiquiatra aposentado com mais de 80 anos, Richard (carinhosamente apelidado de Dick) começou a dar alguns sinais de perda de memória recentemente. Para tentar lidar com a doença e a proximidade da morte, ele e sua filha resolvem embarcar nesse peculiar experimento fílmico de simular mortes inusitadas e inventar acidentes falsos. “Dick Johnson is Dead” (no original) não apenas reúne essas encenações como também destrincha todo o processo de criação do projeto, além de registrar conversas e momentos do cotidiano dos dois.

A ideia, portanto, não é a de seguir alguma estrutura  documental convencional, mas sim de construir uma obra totalmente pessoal, com ênfase justamente na subjetividade de tudo. E é isso que torna toda a experiência tão única. A abordagem dos registros pessoais pode não ser necessariamente uma novidade para o mundo dos documentários, mas é feita de forma tão íntima e inventiva que acaba dando um caráter singular de criatividade ao filme; não é a toa que o longa levou um prêmio por inovação em roteiro de não-ficção no Festival de Cinema Sundance em 2020. E, além dessa originalidade, o recorte subjetivo também é responsável por trazer o ar aconchegante e caloroso que permeia toda a experiência. Chega a lembrar alguns trabalhos da célebre cineasta Agnès Varda na honestidade sensível que se estabelece para essa relação realizadora-público.

Mas essa sensibilidade não é importante apenas por causa das propostas formais ou da relação com o público. Ainda é, acima de tudo, um filme sobre a morte, sobre o luto, sobre lidar com esses assuntos. E é muito bonito como a Kirsten é, ao mesmo tempo, direta e sensível para abordar isso. Nem ela, nem Dick têm medo de tocar no assunto. Na verdade, eles até brincam com isso, como as bem humoradas simulações nos lembram a todo momento. Ainda assim, como duas pessoas que amam a vida e estão aprendendo aos poucos a lidar com o fim, é evidente a delicadeza com que ambos processam essa ideia e como isso se reflete no filme em si. E precisa se refletir, não só por causa de quem assiste, mas justamente por causa desses dois diante das câmeras.

Por isso, realizar o filme é uma terapia para pai e filha, uma forma de aprender a lidar com a efemeridade da vida e nunca uma aula sobre o assunto. O filme nunca se propõe a responder como se deve enfrentar o luto, e prefere ir aprendendo e observando alternativas para isso, junto com quem assiste.

Ao fim, o que a gente aprende mesmo com “As Mortes de Dick Johnson” é a olhar com atenção e amor para as pessoas à nossa volta. Se, no começo, Dick é apenas mais um senhorzinho gente boa, depois dos breves 90 minutos de duração já nos importamos com ele como se fosse alguém conhecido. Toda a jornada terapêutica e honesta da diretora reconhece que, talvez, amar pessoas seja a melhor forma de celebrar a vida. E a gente não pode entender a morte ou lidar com o luto se não tiver aprendido isso antes.

Ficha Técnica

Ano: 2020

Duração: 89 min

Gênero: documentário, drama

Direção: Kirsten Johnson

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