Por Luciana Ramos

 

O sufixo ish que acompanha a palavra black do título pode ser traduzida como “mais ou menos” e revela a premissa da sitcom de Kenya Barris: Andre (Anthony Anderson), um publicitário bem-sucedido, tem orgulho de ser negro, mas teme que seus filhos não carreguem a mesma carga de identidade racial por terem crescido em um subúrbio rico e viverem em um mundo onde a questão se diz “superada” (algo desmentido ao desenrolar da série). Por meio de ações afirmativas levadas ao exagero, o pai tenta incutir neles aprendizados históricos e costumes da raça, além de lutar contra a falta de informação dos seus colegas brancos sobre suas lutas diárias.

 

Descendente de uma longa linhagem de ótimas séries de comédia que acompanham a rotina de famílias afrodescendentes, como “Um Maluco no Pedaço” ou “Eu, a Patroa e as Crianças”, “Black-ish” foi aos poucos libertando-se do molde narrativo vigente – de confusões envolvendo os membros da família – para se tornar um importante instrumento de discussão do que de fato significa ser negro hoje nos Estados Unidos. Um dos maiores exemplos se dá em um episódio da terceira temporada onde crianças, pais e avós se reúnem na sala para discutir a importância do “The Cosby Show” na autoestima racial – já que foi o primeiro retrato positivo de uma família negra na televisão americana – e a reavaliação do seu impacto cultural diante das inúmeras acusações de abuso sexual envolvendo seu criador, o comediante Bill Cosby. Seus atos fora das câmeras anulam o seu peso representativo? Por outro lado, é possível ainda assistir aos seus episódios e curti-los, agora que o manto de ingenuidade foi retirado? O que isso significa?

 

 

 

Assim, em meio a episódios extremamente engraçados que exploram algum descompasso na família Johnson, surgem debates sobre temas complexos, como o uso da polêmica palavra N, o conceito de miscigenação e o preconceito que as pessoas birraciais (como é o caso de Rainbow, a mãe) sofrem de ambas as comunidades, representatividade na mídia, esperanças e desilusões, e mais recentemente, o peso da escravidão na formação do povo americano. Para abordá-las, o autor espertamente sempre escolhe usar as diferentes gerações para dar voz a sentimentos múltiplos, que não propõem a fechar questões, mas tirar o espectador da sua passividade e fazê-lo refletir junto aos personagens.

 

O mais impactante exemplo é o episódio “Hope”, da segunda temporada, onde todos se juntam para assistir o noticiário de um jovem negro que foi baleado por policiais. Diante da falta de contexto histórico dos filhos, Dre tenta prepará-los para enfrentarem a brutalidade policial, algo rechaçado por Rainbow (Tracee Ellis Ross), que quer manter a esperança no sistema judicial. A conversa revela o temor que eles têm de serem alvos de violência pela cor de suas peles, o que leva a um emocionante discurso do pai sobre o medo que sentiu durante a posse de Obama, visto que os símbolos passados de esperança – como John e Bobby Kennedy, Martin Luther King, Malcolm X- foram alvejados, silenciados de forma cruel.

 

cena do episódio “Hope”

 

 

Ao longo de quatro anos, Kenya Barris conseguiu posicionar sua série como uma obra essencial da televisão americana. Temas de profunda relevância são tratados de forma comovente, inteligente e bem-humorada, envoltos em recursos gráficos, narrativos ou visuais (de animações à números musicais) que elucidam e aprofundam os debates sem torná-los pesados demais – já que, afinal de contas, se trata de uma série cômica. “Black-ish” é, ao mesmo tempo, o produto facilmente digerível que o público espera de uma sitcom familiar e a provocação necessária para promover a reflexão. Absolutamente imperdível.

 

 

Pôster:

 

 

 

 

Ficha Técnica

Ano: 2014 – (em andamento)

Número de episódios: 24 por temporada

Nacionalidade: EUA

Gênero: comédia

Criador: Kenya Barris

Elenco: Anthony Anderson, Tracee Ellis Ross, Yara Shahidi, Miles Brown, Marcus Scribner, Marsai Martin, Jennifer Lewis, Laurence Fishburne

 

 

Trailer:

 

 

 

Imagens:

 

Avaliação do Filme

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