Por Luciana Ramos

 

À primeira vista, Jimmy (Jason Segel) é uma bagunça. Entre sedativos e prostitutas, ele anestesia a morte da esposa com uma festa sem fim, como se o silêncio trouxesse à tona o luto. Seus vizinhos não o aguentam mais e sua filha Alice (Lukita Maxwell) o ignora boa parte do tempo. Aos trancos e barrancos, ele consegue manter-se acordado durante o dia, enquanto ouve seus pacientes repetirem padrões de comportamento em sessões infindáveis de terapia. Seu cansaço é um reflexo das próprias amarguras, mas quando o ex-fuzileiro Sean (Luke Tennie) é submetido aos seus cuidados, Jimmy decide tomar uma posição mais assertiva.

Ele começa a interferir diretamente nas decisões de seus pacientes, julgando suas escolhas e oferecendo opções práticas que lhe pareçam viáveis. Os colegas de consultório Paul (Harrison Ford) e Gaby (Jessica Williams) condenam a abordagem, alertando-o da síndrome de justiceiro moral e, quiçá, possíveis consequências, mas o protagonista se empolga com sua nova persona, ativa e energética, e decide pôr em prática mudanças radicais na sua própria vida.

“Falando a Real” é arquitetada como uma série sobre amadurecimento, focando na jornada de um homem que se comporta como criança diante da tragédia, abstraindo suas responsabilidades para driblar a dor, mas que se vê impelido a remendar seus erros. Obviamente, o caminho é bem tortuoso e a série da Apple TV não tem a menor pressa para se desenvolver.

Seu grande trunfo é a complexidade de seus personagens, suscetíveis a erros de percepção (ou pura teimosia) que se desenrolam em ações um tanto questionáveis. Do rabugento Paul, que se faz de durão para esconder seus medos à entrona Liz (Christa Miller), que supre o vazio do ninho no relacionamento com os vizinhos, passando pelo passivo-agressivo Derek (Ted McGinley) e a animada, autêntica, porém um pouco insegura Gabby, todos possuem boas intenções, mas nem sempre sabem lidar com seus sentimentos e impulsos. É da interação deles, com um se metendo na vida do outro, que a narrativa se constrói, buscando mesclar comédia e drama em proporções semelhantes.

O luto, o abuso, as inseguranças pessoais e a falta de controle da senilidade são alguns dos temas abordados, costurados a partir de (ótimas) piadas que debocham da condição humana. Aqui, as ações possuem consequências em teia e lidar com elas exige, por vezes, uma reavaliação da conduta. Mesmo assim, a aposta é em um invólucro bastante leve, que lembra “Ted Lasso” em vibração (com os criadores em comum Bill Lawrence e Brett Goldstein), mas investe bem mais na conexão do espectador com as peculiaridades de Jimmy e companhia. “Falando a Real” cresce conforme vamos nos tornando mais familiarizados com o modus operandi de cada personagem, brincando com quebras e reforços de expectativas.

Ela não funcionaria tão bem sem o talentoso elenco, cabeceado por Jason Segel, mais conhecido por interpretar Marshall em “How I Met Your Mother”. O seu jeito desengonçado contrapõe-se a caretas sérias e um leve enfado da vida que humanizam Jimmy e, em certa medida, justificam seus atos. Já Lukita Maxwell, que interpreta Alice, mostra-se muito aberta a explorar as emoções de perda e abandono, além de uma dose de julgamento comum a idade.

Jessica Williams está ótima como Gaby, que é um raio de sol em um ambiente masculino e levemente deprimente. Adepta a cantorias altas e uma preocupação excessiva em se hidratar, ela revela uma camada de sofrimento por trás da alegria constante (vide o detalhe das chuchas de cabelo penduradas na luminária), mas disfarça suas emoções para estar à disposição dos outros. Harrison Ford é sem dúvida outro destaque com sua performance como Paul, que parece ter dois padrões de resposta: a reclamação e o grunhido. O ator está bastante confortável no papel e revela aguçado timing cômico.

Luke Tennie, Michael Urie, Ted McGinley e Christa Miller fecham a equação, compondo um equilíbrio delicado entre as personas barulhentas e as camadas de vulnerabilidade que desejam esconder. Esse jogo torna a nova série da Apple, que já tem segunda temporada confirmada, extremamente engraçada, tocante e, portanto, recompensadora.

Ficha Técnica

Ano: 2023 – em andamento

Número de Episódios: 10

Nacionalidade: EUA

Gênero: comédia, drama

Criadores: Brett Goldstein, Bill Lawrence, Jason Segel

Elenco: Jason Segel, Jessica Williams, Harrison Ford, Christa Miller, Luke Tennie, Michael Urie, Lukita Maxwell, Ted McGinley

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